cinema sob uma perspectiva contra-hegemônica

Um “Napoleão” superficial

A cinebiografia de Napoleão Bonaparte, dirigida por Ridley Scott, já está nos cinemas e o filme apresenta uma irregularidade que é própria da obra do diretor.

Por Nilvio Pessanha

Ridley Scott é um cineasta experiente, com mais de 40 anos de carreira e mais de dezenas de filmes no currículo. No entanto, a experiência não o livra de uma irregularidade. Enquanto é o realizador de obras poderosas e aclamadas como “Alien, o 8º Passageiro” e “Blade Runner, o Caçador de Andróides”, também é o responsável por trazer ao mundo filmes muito menos admirados como “Êxodo: Deuses e Reis” e “Todo o Dinheiro do Mundo”. E “Napoleão”, o seu mais novo filme que está em cartaz nos cinemas, reflete parte dessa irregularidade, onde vemos aspectos de um diretor seguro, experiente e competente, aliados a muitos momentos em que surge um cineasta que comete erros que comprometem a qualidade da obra.

“Napoleão” de Ridley Scott é a cinebiografia do estadista e líder militar francês Napoleão Bonaparte que governou o país europeu de 1804 a 1814 (e por um breve período de 1815). A trama do filme tem início com os acontecimentos da Revolução Francesa que culminaram na decapitação da rainha Maria Antonieta. Logo de início já vemos algo que será flagrante no filme, uma ótima direção de arte, com uma competente recriação de época. Tudo que aparece em cena é muito detalhado e planejado dentro da ideia dessa recriação. E logo somos apresentados também ao personagem central, Napoleão (vivido por Joaquim Phoenix, falarei da atuação dele mais para adiante). Esse início, além de sinalizar um recorte histórico do filme, mostra também o cenário social e político com o qual o protagonista deverá lidar durante o discorrer do longa.

Voltando ao recorte temporal que foi feito pelo filme, numa cinebiografia, é natural que haja um recorte. São escolhas a serem feitas para retratar a vida de uma personalidade a ser cinebiografada, ainda mais se for alguém do vulto de Napoleão Bonaparte. Aqui a história não retrata a infância e adolescência do estadista francês e já inicia o filme com o protagonista com 20 anos, em 1789. Outro detalhe é que a mãe de Napoleão, que teve grande influência na sua conduta disciplinadora, só é citada nesse primeiro momento numa narração que o personagem faz numa carta ao irmão. Essa narração, inclusive, se dá por ocasião da primeira grande batalha do filme, que ocorre em Toulon. Outro ponto alto para a direção de Scott é a forma como filma as batalhas, seja ocorrendo à noite ou em meio à névoa do frio russo, tudo é feito de forma que entendamos o que está sendo mostrado em cena. A batalha entre o exército francês contra os russos e os austríacos, além de bem realizada, também mostra a competência do diretor em retratar o lado estrategista do líder militar francês.

O grande problema é que uma história bem contada precisa de mais do que boas batalhas, uma boa recriação de época, um bom recorte histórico etc. Precisa de mais elementos. Principalmente, como já disse antes, a história de alguém da envergadura histórica de Napoleão Bonaparte, e nesse momento o Ridley Scott irregular aparece. Primeiro, falta um bom desenvolvimento de personagem ao Napoleão do filme. Joaquim Phoenix está competente como sempre, mostrando momentos de um militar obstinado, um líder seguro e ambicioso, um homem inseguro e com fraquezas. Mas isso se deve mais ao trabalho do ator do que a um desenvolvimento do personagem central sendo percebido no decorrer da história. As fraquezas, as inseguranças pessoais de Bonaparte não são bem mostradas, não ficam claras o porquê delas. A maioria dos personagens que circundam o protagonista são superficiais, na verdade, com exceção da sua primeira esposa, Josephine (num bom trabalho de Vanessa Kirby), todos são superficiais. O próprio relacionamento entre Napoleão e sua primeira esposa não é bem desenvolvido. Parecem todos meio jogados.

Como meio que jogados são alguns acontecimentos históricos na tela. Em alguns momentos o filme vai pulando de um acontecimento para outro sem um encaixe narrativo adequado. Quando vemos algo diferente disso, fica nítida a diferença. Por exemplo, ao fim da batalha contra os exércitos russos e austríacos, corta para uma conversa num acordo de paz e, por fim, corta para Napoleão dançando num baile, numa festa, com Josephine. Tudo se encaixa e faz sentido narrativo. Porém em muitos outros momentos, o que vemos são passagens históricas que, como disse acima, são meio que jogadas e não têm tanta harmonia entre si.

“Napoleão” de Ridley Scott é um filme que mostra por meio da fotografia, das imagens a grandiosidade das batalhas, também, em muitos momentos, a grandiloquência e a ambição de Bonaparte; recria com competência a época retratada através de uma ótima direção de arte; tem atuações destacáveis e elogiáveis de Joaquim Phoenix e Vanessa Kirby. Entretanto não supera a batalha contra a falta de um desenvolvimento melhor da história e dos personagens. “Quer dizer então que não vale a pena ir ao cinema ver ‘Napoleão’? Você pode estar me perguntando. Vale, sim. Embora haja erros que comprometam o resultado final da obra, não deixa de ser uma experiência interessante assistir ao filme. Interessante, porém não vá pensando em ver algo épico ou memorável.

Precisão histórica

Sinceramente, é muito chata essa discussão em torno de filmes de teor histórico sobre a tal da precisão ou imprecisão histórica. Cineasta, por mais que faça pesquisa para sua obra, não é historiador. A não ser que haja algo historicamente desonesto no filme (por exemplo, se o filme de Scott mostrasse um Napoleão traidor da França, espião do exército inglês, algo assim), o cineasta deve ter compromisso primeiramente com a sua arte e com a sua obra.

Nilvio Pessanha é professor da rede pública, produz o podcast Cine Trincheiras e um curioso sobre cinema, além de ser vascaíno.

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