Entrevista realizada por Michel Ciment em 1999
Como Kubrick o procurou para interpretar Alex, em Laranja Mecânica?
Ele tinha me visto em Se… (If…, 1968), de Lindsay Anderson, me telefonou e me pediu que lesse o romance de Anthony Burgess. Mais tarde, me propôs o papel. Ele não fez testes, queria simplesmente saber se eu gostaria de interpretar o personagem. Eu me lembro de que, para os outros papéis, ele fez audições com atores em minha casa. Era um loft e ele gostou muito dele. Queria até filmar ali a cena da Mulher dos Gatos, mas não deixei! Stanley não me deu nenhuma explicação nem fez nenhum comentário sobre Alex. Foi Lindsay Anderson que me deu uma base. Ele não compreendia o roteiro, achava que não tinha nem pé nem cabeça, mas eu queria sua opinião. Ele me disse que havia em Se… um close de mim em que eu sorria antes de entrar em um cômodo onde alguém vai me castigar com uma vareta. “É assim que você deveria interpretar o papel”, ele acrescentou. E era isso mesmo. No primeiro dia de filmagem com Stanley, eu estava nervoso, claro, mas não mais do que o habitual, sabia exatamente como interpretar, e filmei a primeira cena como Lindsay havia sugerido.
Um dos aspectos mais impressionantes de sua interpretação é o tom de sua voz.
Por causa da linguagem no romance de Burgess, decidi fazer o sotaque do norte. Quando conheci o escritor, dois anos mais tarde, ele me agradeceu por essa escolha, que achava interessante. Na verdade, nós dois éramos de Yorkshire, mas eu não sabia disso, pois não fomos autorizados a conhecer Burgess durante a filmagem. O sotaque do norte não é tão arrastado como o cockney. É mais nobre, com uma cadência mais suave. Stanley não prestava muita atenção nisso, não estava realmente interessado, deixava esses detalhes para os atores.
Suas filmagens estavam sempre em constante evolução.
Todas as pessoas que trabalharam com ele lhe dirão que ele sabia o que não queria, mas descobria aos poucos o que queria realmente. As grandes cenas de Laranja Mecânica vinham da improvisação, mas nem por isso o filme foi improvisado. Havia um roteiro e nós o seguíamos, mas ele sabia quando não funcionava, e ensaiávamos sem parar, até ficarmos entediados. Então eu lhe dizia que ia tentar alguma coisa e ele me diria se aquilo convinha. Por exemplo, a sequência em que entramos na casa do escritor: o roteiro previa que batêssemos nele, roubássemos sua casa e quebrássemos as janelas com garrafas. Era muito chato. O fato é que também tínhamos acabado de filmar a sequência final do hospital, que era brilhante. Tínhamos visto os copiões e ela estava tão incrível que Stanley correu em minha direção para me dizer: “Malcolm, meu Deus, não gosto de dizer isso, mas foi formidável. Estou realmente muito feliz”. Depois ele tentou filmar essa sequência na casa do sr. Alexander durante uma semana, e ficamos exaustos. Eu quis um ou dois dias de descanso. Finalmente, ensaiamos mais algumas vezes e não deu em nada. Então Stanley me perguntou: “Você sabe dançar?”. Respondi: “Claro!” – um ator sempre responde isso a um diretor. “Sabe montar a cavalo?”, “Lógico!” Foi então que me veio à mente Singin’ In The Rain. Alex ficava muito eufórico quando batia, e para mim, como Hollywood nos ensinou, a euforia é Gene Kelly dançando em Cantando na Chuva. Então comecei a cantar e Stanley começou a dar gargalhadas. Era a primeira vez em uma semana que algo acontecia. Ele foi imediatamente para o estúdio de Borehamwood, telefonou para NY e comprou os direitos da música. Tornou-se, claro, uma das sequências mais memoráveis do filme, e tinha que ser assim, por causa de sua situação na história e da futura cena de retribuição. Foi um grande momento, e devo dizer que, quando fizemos a sequência seguinte, no plano de filmagem, justamente a da retribuição, foi Stanley quem teve a ideia de me fazer cantarolar a mesma música quando estou tomando banho.
Ele já fazia muitas tomadas?
Dependia das cenas. Ele só multiplicava as tomadas para obter exatamente o que queria. Às vezes quatro, às vezes vinte, por causa de determinados movimentos muito complicados. O plano de abertura que combinava um travelling para trás e um zoom precisou de umas dez tomadas e de toda a manhã.
Ele colocava música no set durante a filmagem?
Nunca. A única vez que fez isso foi quando tentou obter um determinado olhar, quando eu escutava a Nona Sinfonia de Beethoven. Ele pediu muitas expressões diferentes, mas eu estava com medo de ser excessivo e ficar ridículo. Sabia que ele aceitaria tudo que fosse desmedido, mas queria permanecer nos limites da realidade. Ele pôs a música quando eu estava deitado em minha cama. Quando o canto chega a “I’m happy again / I’m laughing at clouds”, consegui fazer aquele olhar repugnante. Ele começou a dar gargalhadas. Stanley é maravilhoso porque é o melhor dos espectadores! Claro, quando eu pensava nele durante todos esses anos, tinha uma sensação de angst, mas a filmagem em si foi um prazer maravilhoso, e conseguiu resultados espantosos.
O que você chama de angst?
Ele não queria falar com meu empresário para assinar meu contrato. Minha situação não era muito boa para eu lhe dizer que se não aceitasse minhas condições seria uma pena, mas ficaríamos ali. Eu era um jovem ator e sabia que aquele era um grande papel. Finalmente, eu lhe disse que faria Laranja Mecânica com as mesmas condições que tive no filme No Limiar da Liberdade. Ele concordou e me perguntou quanto eu havia recebido: “Cinquenta mil dólares mais 2,5% sobre a bilheteria”. Ele me disse que achava que não funcionaria com a Warner. Eu lhe disse que ele havia concordado no início, que o problema era dele e que podia tirar meus 2,5% de sua própria porcentagem. Ele me telefonava a cada dois ou três dias para falar sobre isso. Um dia, como um idiota, eu lhe disse: “Está bem. Se você quer ser mesquinho nesse negócio, esqueça a droga da porcentagem!”. Isso deve ter me custado muitos milhões de dólares!”
Kubrick mencionou Ricardo III para Alex pensando em sua atração pelo mal.
Eu lhe disse um dia que Alex me fazia lembrar de Laurence Olivier em Ricardo III. É um ator que influenciou a todos nós e eu tinha em mente essa imagem dele. Só que Alex não era realmente mau. Era o produto de seu meio, da maneira como tinha sido criado, da absoluta indiferença de seus pais para com ele.
Como foram filmadas as cenas imaginadas por Alex, que se passam na época romana?
De modo bem rápido. Mas eu me lembro de que a primeira imagem do filme de que ele me falou foi a de Alex como centurião chicoteando Cristo, que anda com dificuldade. Ele sabia o que queria. Lembro-me também do plano em que ele come um cacho de uvas rodeado por duas mulheres nuas; a cena foi feita em duas tomadas em um pequeno estúdio. A cena que mais demorou a ficar pronta foi a do hospital, onde a psiquiatra empurra seu carrinho no corredor e entra no quarto dele para lhe aplicar testes. Depois de quarenta tomadas, eu disse a Kubrick: “Stanley, isso é muito chato. Por que você não me deixa dizer a primeira coisa que me vier à cabeça?”. Ela me mostra uma imagem de um pássaro e diz: “A plumagem é magnífica”, e eu respondo: “Repolho, calcinhas”. Depois ela me mostra um ladrão entrando no quarto onde uma mulher nua está deitada em sua cama e eu digo: “Não tenho tempo pra entra-e-sai, querida. Só vim ler o medidor de luz”. Ficava engraçado e evidentemente muito melhor.
Como foi feita a escolha das atualidades n_zist_s durante o tratamento Ludovico?
Vimos os filmes mais terríveis de propaganda n_zist_. Não entendi por que Stanley escolheu trechos tão inofensivos. Aqueles bombardeios e aquelas tropas alemãs desfilando não eram nada comparadas com imagens a que assistimos e que davam vontade de vomitar. Os planos de Buchenwald e de Auschwitz eram impressionantes, como também, alguns anos antes, em 1936, os tratamentos inflingidos aos judeus e que eram realmente ignóbeis. Assistimos com Stanley a esses filmes durante horas e ele não escolheu os trechos mais fortes, pois, penso, queria atingir um público maior e não perturbá-lo muito.
A Mulher dos Gatos é uma personagem bem diferente no livro de Burgess.
No romance é uma idosa, muito gentil. Na época, eu não concordava com o fato de Stanley fazer dela uma personagem tão desagradável. Ele me explicou que, se quiséssemos ter um mínimo de simpatia por Alex, era preciso que ela fosse tão forte quanto ele. E ele tinha toda a razão.
Não havia cobra no livro.
Eu a chamava de Basil, a cobra. Era preciso ser alguém bem estranho para gostar de uma cobra. Nós nos dávamos bem e às vezes era muito engraçado. Quando rodamos uma cena em que eu devia abrir uma gaveta e tirar uma serpente dali, ela não estava mais lá! Todos saíram correndo da sala, inclusive Stanley, mas na verdade ela estava debaixo da cama, totalmente inofensiva.
Em que momento o figurino e a maquiagem foram concebidos?
Tudo foi decidido de antemão durante os meses de pré-produção. Eu morava na Church Street, Kensington, onde ficava a Biba, uma loja bem da moda no fim dos anos 60. Todo mundo fazia compras ali. Entrei na loja e havia um mostruário, de um metro, de cílios e você podia escolher o que quisesse. Comprei alguns para mostrá-los a Stanley, achando que era engraçado, e ele riu mesmo. Ele me pediu para provar um. Eu o coloquei sobre meu olho direito e ele tirou uma foto, como sempre fazia. Depois fotografou os dois olhos com os cílios. No dia seguinte, ele olhou as fotos e me disse: “Olhe, está perfeito, vamos começar com um cílio sobre um olho e as pessoas vão pensar que há algo esquisito que está errado, sem saber exatamente por quê”. Era assim que ele criava. Depois usei o que vestia para proteger meu sexo quando jogava críquete. Ele também mandou vir botas dos fuzileiros navais dos Estados Unidos.
A voz off foi gravada depois do fim da filmagem?
Sim, e foi uma experiência maravilhosa. É como um acompanhamento musical e tem sempre um papel muito importante em seus filmes. Para a maioria dos roteiristas, é uma escapatória, para ele, não. Ela enriquece Laranja Mecânica e também torna o personagem mais caloroso e simpático. Quando você conhece seus pensamentos, Alex tem um lado cômico que faz com que você goste dele. Gravamos aquele monólogo na sala de Kubrick, com um microfone Senheiser e um gravador Nagra.
O que havia de específico na maneira de Kubrick trabalhar, comparada com a de outros diretores que você conhece?
O que caracterizava Stanley era o fato de ele ter muita autonomia para fazer tudo o que desejava. Quando trabalhei com ele, ele havia feito um contrato generosíssimo com a Warner e controlava totalmente o filme. Podia demorar quanto quisesse e, quando não estava satisfeito, esperava até obter o que julgava estar perfeito. A filmagem de Laranja Mecânica não demorou tanto quanto a de seu último filme, mas durou uns nove meses.
Ele parecia ter o mesmo prazer com os atores e na experimentação com a técnica.
Acho que, em um mundo ideal, Stanley teria preferido trabalhar sem atores e utilizar computadores. Teria sido perfeito, pois ele não dependeria de ninguém. Os atores são barris de pólvora versáteis que podem muito bem não fornecer o que ele deseja. Ao mesmo tempo, ele tinha prazer em estar conosco, embora fosse sempre um pouco desconfiado. Eu me lembro de Carl Duering, que interpretava Brodsky e devia fazer um longo discurso sobre o treinamento Ludovico. Ele chega ao set de filmagem com seu impermeável, uma pasta de documentos e uma xícara de café quente. Stanley o recebe: “Olá, sou Stanley Kubrick”. O outro, que ainda não o conhecia, fica impressionado e gagueja. Stanley: “Você sabe seu texto?” “Claro, senhor Kubrick.” Stanley: “Então diga-o.” O homem sussurra algumas palavras. Stanley: “Você disse que sabia seu texto”. Ao mesmo tempo, ele adorava os momentos em que alguma coisa acontecia. Quando o primeiro-ministro me alimenta com a colher na última sequência e começo a mexer o queixo e bater os maxilares, ele ria tão alto que colocou um lenço na boca para abafar o barulho.
Acho que há até mesmo um plano em que podemos ouvi-lo rir. Poderíamos escrever três páginas de diálogo, mas essa expressão física resumia toda a situação. É aí que o cinema é grandioso, e descobrir momentos com ele foi uma experiência maravilhosa. Além disso, ele era um homem muito feliz no casamento. Lembro-me de suas filhas, Vivian e Anya, correndo na sala. Era uma felicidade ver aquela família unida. No trabalho era diferente. Quando você faz um filme de Kubrick, é como viver uma guerra e fazer parte de um clube muito especial, bem seleto. Por isso me entendi tão bem com Peter Sellers. Ficamos logo amigos, pois havíamos entrado na guerra de Stanley, e quando você vive essa experiência extraordinária, merece uma medalha de honra. É uma aventura muito frustrante e faz com que você viva todas as emoções que um ser humano pode sentir. Você o adora, o detesta, tem momentos de grande tristeza, de raiva, de felicidade e de riso: tudo. E ele era, é claro, um homem extraordinário. O mundo do cinema perdeu realmente um de seus gigantes, não há dúvida quanto a isso. É como ter perdido Hitchcock ou John Ford. Ele está entre os melhores, e eles não são muitos.
Trecho de Conversas Com Kubrick (Cosac Naify, p.277-284)