Por Iuri Freire
Não há salvação, apenas a miséria esculpida sob a visceral máscara da escassez: aquela que, como preconizou Glauber Rocha em seu manifesto Estética da Fome, é sentida, porém incompreendida pelos sertanejos que dela padecem.
A trilha sonora limita-se ao estridente ruído dos carros de boi, pois utilizar-se de uma orquestra ou qualquer outra modalidade de música extradiegética seria puro capricho estético desprovido de qualquer serventia frente à aridez das imagens que irão acompanhar o espectador pelos próximos cem minutos.
Estamos diante de Vidas Secas, quinto longa-metragem dirigido pelo pai do cinema moderno brasileiro, Nelson Pereira dos Santos e baseado na obra homônima do alagoano Graciliano Ramos, de quem o diretor já havia, anos antes, tentado adaptar o romance São Bernardo em um projeto abortado após o escritor não aprovar a ideia, proposta por Nelson, de alterar o destino de uma das personagens da trama.
(Anos depois, no começo década de 1970, São Bernardo finalmente ganharia as telas pelas mãos de Leon Hirszman, que realizaria um brilhante estudo de personagem pautado na assombrosa atuação de Othon Bastos na pele do fazendeiro Paulo Honório).
Mas por ora, voltemos ao objeto de análise deste ordinário ensaio.
Porque se em Deus e o Diabo o sertão vai virar mar, aqui o sertão vai pegar fogo, ou melhor, está pegando fogo. A fotografia – assinada por Luiz Carlos Barreto e José Rosa – deliberadamente estourada emana uma luz opressora que a todo instante molesta a existência daqueles condenados da Terra que subsistem em troca de alguns míseros réis e um bezerro para cada quatro que nascem.
A imensidão branca que faz brotar aquela família de retirantes na abertura do filme é a mesma que os devora durante o encerramento; é como se a obra operasse numa lógica de looping eterno, uma vez que a existência daqueles flagelados haverá de ser uma existência talhada à perpétua procura por moradia, comida e labor, que surgirão apenas de forma brutalmente precarizada, tal qual almejam os donos do poder.
Não é por acaso que o capataz da fazenda, que a princípio tenta expulsar a família da propriedade, logo muda de ideia ao ser informado pelo pai, Fabiano, de que ali, além dele, só havia a esposa, duas crianças e a cachorra Baleia (vivenciada por Piaba, comprada pelo valor de mil cruzeiros em uma feira e provável detentora do título de maior atuação canina da história da sétima arte, chegando ao ponto de ser convidada para figurar em Cannes como prova irrefutável de sua sobrevivência, visto que Sociedade Protetora dos Animais acusara Nelson de tê-la realmente assassinado [!] na dramática cena de sua morte).
E é assim que tem início – e jamais terá fim – a trágica saga daqueles personagens.
“Mãe, o que é o inferno?”, indaga – em certa altura do filme – a criança mais velha, cujo nome desconhecemos simplesmente porque jamais nos será revelado.
“É um lugar para onde vão os condenados, cheio de fogueira, espeto quente…”, responde a mãe, Sinhá Vitória.
“A senhora já esteve lá?”, recruta o menino para a mãe que, horrorizada com tamanho despautério, lhe aplica um cascudo.
Ao sair do casebre, ainda entre lágrimas e com as palavras da progenitora a ressoar em sua cabeça, ele observa o mundo que habita o seu redor e conclui que o inferno é ali. E talvez, ironicamente, seja este o momento em que um personagem de Vidas Secas chegue mais próximo de uma tomada de consciência a respeito da miséria que o acomete.
Porque ao contrário do que ocorre em Deus e o Diabo na Terra do Sol, do já citado Glauber Rocha e Os Fuzis, de Ruy Guerra, demais filmes que completam de forma oficiosa a icônica Trilogia do Sertão, não há, em Vidas Secas, a presença de um elemento que personifique algum contraponto argumentativo como forma de resgatar aqueles personagens do seio da alienação; lembremos do marginal Corisco na obra de Glauber e de Gaúcho (coincidentemente interpretado por Átila Iório, protagonista do filme de Nelson) na obra do moçambicano Ruy.
Não que os demais aceitem de bom grado a desgraçada existência da qual compartilham. Sinhá Vitória, por exemplo, em vários momentos se queixa das degradantes condições em que se encontra junto aos seus, tem o sonho de adquirir uma cama de couro, questiona-se se nunca haverão de ser gente.
Fabiano, por sua vez, externa sua indignação ao perceber-se enganado pelo patrão, que lhe rouba uma parte do minguado pagamento; assim como também é capaz de demonstrar impulso de vingança para com o soldado que havia sido o responsável pela sua injusta prisão ao encontrá-lo perdido no mato e lhe apontar o facão, para pavor de seu antagonista.
Mas a revanche não se concretiza.
“Governo é governo”, Fabiano pensa em voz alta, e recua, vítima que é da impotência enquanto sintoma do subdesenvolvimento.
Portanto, não é covardia o que se vê em cena, mas sim cansaço diante da constante inadequação que a realidade material proporciona aos indivíduos de sua classe social, substancializada nos sapatos que não cabem em seus pés e lhe obrigam a pisar descalço no fumegante solo do semiárido; mesmo um momento de breve fuga daquela mesma realidade é frustrado quando ele se dá conta de que a dose de cachaça que havia comprado na vendinha mais uma vez estava diluída em água.
Por isso chama atenção que a única alternativa apresentada a Fabiano como possibilidade real de mudança de patamar seja o convite que o jovem cangaceiro com quem havia dividido cela lhe faz para entrar em seu bando.
“O capitão paga bem, quer ir mais nóis?”
Sob a égide do capitalismo periférico, o miserável, para fugir de seu destino famélico, converte-se em fora da lei.
(“Banditismo por uma questão de classe”, cantaria, três décadas adiante, o pernambucano Chico Science; e que fique claro que não se trata aqui de romantizar tal cenário, mas tão somente expor um sintoma específico atrelado a uma problemática ainda maior: a da descomunal concentração fundiária existente no Brasil, herança maldita que remonta aos tempos das capitanias hereditárias, será fortalecida com a Lei de Terras de 1850, responsável por transformar a terra em propriedade e deixar de fora desse bolo a massa de escravizados e trabalhadores pobres, e finalmente consolidada após o golpe de 1964, cujas leis trabalhistas promulgadas iriam operar no sentido de impelir uma mecanização do campo, porém sem alterar sua estrutura social).
Mas eis que, após os mais longos segundos de reflexão de sua vida, Fabiano declina da oferta se volta para os seus familiares.
Nada mudará, entrega o resignado olhar do pai dessa família durante sua derradeira caminhada ao lado da indignada, porém esperançosa esposa, pois não há redenção para aqueles cuja humanidade parece ser um ingrato sonho a ser inutilmente perseguido, não por uma questão de culpa ou incompetência, mas em função de um sistema exploratório sempre ávido por se alimentar do raquitismo das massas em proveito da fortuna de uma exclusiva casta de sórdidos privilegiados.
Não há salvação.
Uma resposta para “Sertão em chamas”
extraordinário texto que guardarei em minhas leituras e também estar compartilhando com mais amigos que amam a literatura,Cinema brasileiro..