cinema sob uma perspectiva contra-hegemônica

NOSFERATU e o gótico libidinoso de Robert Eggers

Em março de 1922, começava a ser exibido nos cinemas, na Alemanha, aquele que seria considerado o primeiro longa-metragem sobre vampiro e também se tornaria um grande clássico do cinema mundial, Nosferatu, do diretor F. W. Murnau. O filme era uma adaptação do diretor alemão de Drácula, romance gótico de terror de Bram Stoker. Murnau não detinha os direitos para adaptar a obra do escritor inglês e, por isso, a viúva de Stoker entrou na justiça pedindo a destruição de todas as cópias do filme. Coisa que quase aconteceu. Se podemos acessar o YouTube e assistir a Nosferatu de Murnau, foi porque os deuses da cinefilia agiram e não deixaram que algumas cópias fossem destruídas.

Pois bem, o filme do expressionismo alemão ganhou uma refilmagem que estreia agora no dia 2 de janeiro nos cinemas nacionais. O Nosferatu, de Robert Eggers (A Bruxa e O Farol), que toma como base, não só a obra de Murnau, mas também o livro de Stoker, é um exemplo de como se fazer um remake. Eggers traz um longa-metragem que tem bastante respeito às obras base, porém acrescentando aspectos estéticos e narrativos próprios.

O filme traz a jovem Ellen (Lily-Rose Depp), que é assombrada em seus sonhos por uma figura macabra que é obcecada por ela. Seu noivo, o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicolas Hunt), tem que viajar a trabalho à Transilvânia para fechar uma venda para o Conde Orlock (Bill Skarsgard), que é, justamente, o ser que assombra Ellen. Essa é a premissa básica do filme, que é a mesma da obra literária e do posterior filme alemão. Só que nessa releitura, Eggers já traz logo no início um elemento novo: o de que Nosferatu chegou até Ellen, quando mais jovem, por meio de uma prece que ela fez pedindo para que um anjo pudesse ajudá-la na sua aflição e solidão. Atraído por essa prece, o ser maligno passou a nutrir obsessão pela moça.

E esse é o ponto de partida para que o diretor – que também escreveu o roteiro do filme – construa sua narrativa bastante calcada no conflito envolvendo Ellen. O macabro personagem interpretado por Bill Skarsgard pode ser visto como representando o pecado, e a partir do momento em que Ellen fica angustiada por se sentir triste e solitária, ela tem a ameaça do pecado que quer seduzi-la. Historicamente, dentro da sociedade cristã ocidental, sabemos que as mulheres sempre tiveram a sua sexualidade mais reprimida. A mulher tinha que ser comportada, pura, virgem. Em vários momentos vemos personagens femininas lutando contra sua sexualidade. Numa das suas crises, Ellen tem suas roupas íntimas apertadas, como uma forma de “protegê-la”, assim como sua menstruação é citada também. Anna, melhor amiga de Ellen, também sucumbe quando entra em contato com o universo pecaminoso de Nosferatu. A peste trazida pelo Conde Orlock a Wisborg vai se espalhando e ameaçando toda a cidade, tal qual a devassidão e o pecado podem ameaçar uma sociedade conservadora. O professor Albin Van Franz, personagem vivido por Willem Dafoe, é uma espécie de porta-voz de um discurso cristão, falando em Deus e em sacrifício como salvação. Enfim, Eggers usa de Nosferatu para mostrar o quanto o desejo feminino pode ser estigmatizado. Uma mulher que se rende ao desejo sexual pode ser vista como Ellen foi, doente, louca ou, até mesmo, amaldiçoada.

E toda essa trama é muito bem contada também por meio de imagens que, por vezes, trazem uma estilização, como em toda a sequência em que Thomas encontra a carruagem para levá-lo ao castelo de Orlock, castelo, inclusive, muito bem caracterizado, mostrando toda a aura gótica que o diretor emprega no filme. A caracterização do Conde é uma das coisas que mais chamam a atenção no filme. Uma boa escolha do cineasta é demorar a revelar o visual do vilão. Enquanto no filme de 1922 o Conde Orlock é revelado assim que seu visitante chega ao castelo e apresenta, inicialmente, um tom mais amigável, nesta refilmagem de Robert Eggers o Conde demora a surgir de forma mais explícita, se mantendo nas sombras, e mostrando-se muito mais ameaçador. Bill Skarsgard desaparece no personagem. Não só pelo trabalho de maquiagem e efeitos, mas sua interpretação contribui muito para isso. Realmente é muito crível o medo que ele impõe a Thomas Hutter. As já citadas sombras são muito bem exploradas, deixando ainda mais marcante essa atmosfera gótica e o diálogo com o expressionismo alemão.

Robert Eggers mostra, em Nosferatu, como fazer um bom remake. Além de apresentá-lo com um novo visual para as novas gerações, também traz esses novos elementos narrativos que fazem com que não seja apenas uma refilmagem pela refilmagem. O diretor se consolida ainda mais como um nome expressivo da nova geração de cineastas. Seu Nosferatu merece muito ser assistido. Pecado seria não ir ao cinema apreciá-lo.

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