cinema sob uma perspectiva contra-hegemônica

CinEntrevista: Haroldo Borges

Entrevista realizada por Yves São Paulo

A Plano 3 Filmes tem um lugar especial na cinematografia baiana. Fez parte de um núcleo dos mais criativos do curta-metragem durante os anos 2000, quando as experimentações das novas gerações eram apresentadas no Festival 5 Minutos. Com o fortalecimento e continuidade das políticas de cultura, o grupo pôde alçar voos ainda mais amplos, como os seus recentes lançamentos no longa-metragem.

Saudade Fez Morada Aqui Dentro é o caso de grande sucesso do grupo, que vem angariando maior atenção e público para os seus filmes. Grande vencedor do Festival de Mar del Plata, onde saiu com os prêmios de Melhor Filme pelo júri e pelo público, angariou ainda uma das maiores consagrações para o cinema baiano (o que não é dizer pouco): o prêmio Netflix, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Saudade Fez Morada Aqui Dentro torna-se o primeiro filme baiano a alcançar um lançamento simultâneo em 190 países, através da plataforma. Para celebrar esse feito de uma super equipe, propus algumas questões para o diretor do filme, Haroldo Borges.

Você pode se apresentar? (Onde nasceu, de onde veio, se primeiro despertar artístico, primeiro conflito com ser artista, a inspiração para ser cineasta).

Vamos então ser transportados para Feira de Santana dos anos 80, mais especificamente para a rua Nova Iorque, número 121. Foi aí onde tudo aconteceu: a infância. Meu pai sempre foi um excelente contador de histórias. Nas rodas de conversa não tinha pra ninguém. As mais engraçadas, as mais surpreendentes, eram as dele. Ele lia muito astronomia, então tinha histórias incríveis sobre a formação do universo e das galáxias. Eu ficava maravilhado com aquilo. Imagens se formavam na minha cabeça e eu só queria passar pra frente aquilo que via com os olhos da imaginação.

Minha primeira tentativa foi o desenho. Tentava criar histórias em quadrinho, mas só conseguia ficar desolado com os resultados. Decalcava os desenhos com papel manteiga, mas não faltava gente pra me lembrar que esses assim não tinham valor. Num ataque de fúria destruí tudo. Entrei na adolescência com esse forte sentimento de frustação, até que um dia, assisti um filme de ficção científica na sessão da tarde. Vi ali a materialização das imagens que sonhava. Me agarrei a ideia de que uma câmera de cinema salvaria minha vida.

A PLANO 3 FILMES tem um currículo relevante de obras no universo da infância e da adolescência: o curta Meninos, o documentário Jonas e o circo sem lona, seu primeiro longa de ficção, Filho de boi, e agora esse último, Saudade fez morada aqui dentro. Em suma, filmes de formação. O que te move, pessoalmente, a escrever e filmar estas histórias de formação e por que retornar à infância e adolescência?

Tem uma frase, que gosto muito, que diz que “só olhamos para o mundo uma única vez, na infância. Todo o resto é memória”.

Se o cineasta fosse um super-herói, o seu olhar seria o seu superpoder. Seu olhar é a única coisa que ele tem para oferecer ao outro. Então se o olhar é tão importante assim, devemos cuidá-lo. E quem, se não a criança, possui o olhar mais fresco? O olhar de quem vê o mundo pela primeira vez. Filmar a infância é uma forma de resgatar esse paraíso perdido dentro de nós. Manter essa criança desperta. Mas acontece uma coisa curiosa com o olhar. Por mais que a gente olhe, nunca podemos realmente ver o mundo.

Estamos na verdade sempre projetando nossas próprias fantasias no outro. Vemos o que somos. E se nosso olhar é uma construção, podemos cultivá-lo. Arejá-lo. Temos que viajar, ler bastante, conversar com pessoas de opiniões diferentes das nossas e também filmar as crianças.

Com sua curiosidade genuína, as crianças nunca brincam de brincar, sempre brincam de verdade. E como o cinema é um grande faz de conta, as melhores atuações são sempre delas. As crianças sabem como ninguém, que entre o ação e o corta, reina a fantasia.

Haroldo Borges – crédito: Divulgação

O cinema de formação é um gênero relativamente recente no cinema brasileiro. Apesar de termos exemplos mais antigos de filmes para o público jovem – como os filmes dos Trapalhões – não eram necessariamente histórias de crianças e adolescentes. Nesse cenário, vocês buscam diálogo com alguma cinematografia anterior para a criação dessas histórias?

A maior fonte de inspiração para o “Saudade Fez Morada aqui Dentro” foi o documentário. Mais especificamente o Cinema Direto, aquela escola de documentário que explodiu nos anos 60. Nesse movimento, a promessa do cineasta era apresentar pessoas reais vivendo suas vidas de verdade. Eles alimentavam um desejo secreto de ser invisíveis. Olha que fantasia cativante! Mais tarde as coisas tomaram outro rumo já que eles perceberam que o mero e simples ato de observar gerava uma transformação. Então o foco recaiu na relação que o cineasta estabelece com seus personagens. Ao final é isso que sempre filmamos: uma relação. Estabelecer esses vínculos é a essência desse cinema que gostamos tanto de fazer.

Vamos falar sobre Saudade fez morada aqui dentro. Primeiro de um ponto de vista estético: a câmera dele é sempre na mão e em proximidade com as personagens. Quando Bruno, o protagonista, perde a visão, ela se transforma numa câmera que praticamente leva o espectador a tatear o mundo e redescobri-lo de uma nova perspectiva, junto com Bruno. Qual a sua concepção para esta outra forma mais livre e sensorial de filmar, no qual a câmera é encarada como mais do que um dispositivo de visão, mas de percepção?

Foi uma revelação descobrir que a câmera não é uma máquina de fazer imagens. Ela é um olho. Mas diferente do cine-olho do Vertov, que focava na visão objetiva do real, penso mais naquele sujeito que ao filmar o destino dos seus personagens, termina se conectando com eles, porque sente que filma a sua própria tragédia. Porque sente neles um espelho para suas próprias aflições.

Eu me apaixonei pelo cinema criando filminhos na cabeça enquanto ouvia meu pai contar suas histórias. Ele conseguia deixar cada momento único porque improvisava com o que recebia da plateia. A intuição lhe guiava. A câmera na mão me permite emular esse estilo. A flexibilidade, a liberdade de se mover entre os atores. De até se esbarrar com eles por tá tão próximo. Esse estilo te permite narrar com todo seu corpo.

Em minha fantasia me vejo junto a aqueles cineastas amadores dos anos 80 e 90. Época das câmeras de Super 8 e do VHS. Eles faziam uma espécie de Cinema-Direto doméstico. Filmavam a vida cotidiana: As festas de aniversário, os casamentos, os almoços de domingo. Por normalmente pertencerem a família que filmavam, eles conseguiam ter livre acesso a intimidade de seus personagens. Então o segredo é esse: se sentir um membro da família de seus personagens. Isso é filmar a relação.

Nos eventos de lançamento do filme, você e a Paula Gomes, também roteirista do filme, comentam sobre como vocês abdicaram de entregar o roteiro aos atores. Como então vocês conseguiram fazer as sequências das cenas, acompanhar os eventos já desenvolvidos na descrição do roteiro?

Ao não entregar o roteiro ao elenco, eles perdem a perspectiva de seus personagens. Perdem literalmente o controle sobre quem serão no filme. Não sabem muito bem aonde tudo aquilo vai acabar. E fica tudo um pouco mais parecido com a vida real. Temos o cuidado também de filmar o máximo que podemos na ordem cronológica. E cena a cena vamos contando a história pra eles. O Bruno, protagonista do “Saudade”, sabia que ia ficar cego, mas não sabia quando isso aconteceria e nem quais seriam as consequências disso. Então todo dia logo pela manhã ele perguntava “É hoje que vou ficar cego?” Essa falta de controle com os desdobramentos das cenas, deixa os atores serem eles mesmos. Perdem essa noção muito arraigada de construção de personagem.

A proposta é trabalhar com eles do jeito que são. Essa estratégia funciona também para os atores profissionais. Tanto Vinícius Bustani como Heraldo de Deus não receberam uma linha de diálogo. Essa estratégia fez os atores defenderem seus personagens com seu próprio vocabulário.

Por isso é tão legal trabalhar com atores que já estão no universo do filme. O cineasta não precisa fazer um laboratório com eles para que possam mergulhar na atmosfera do filme. É o contrário. O cineasta aprende com seus atores sobre o universo que ele quer explorar. Olha que maravilha!

Ainda em sequência à pergunta anterior, como quebrar esse envaidecimento e ciúmes do roteirista sobre suas palavras escritas?

Durante muito tempo eu fiquei particularmente indignado do porque um roteiro cinematográfico não ser também considerado uma obra de valor literário. Porque no teatro o texto é sagrado. Enquanto que o destino de um roteiro de cinema, após as filmagens, é a cesta de lixo. Mas aí com o tempo, não teve jeito, fui desapegando. Fui percebendo que considerar o roteiro uma obra de arte, com filmagens cuidadosas para não macular sua perfeição, corre o perigo de resultar num filme ruim.

Um roteiro deve ser um convite para a experimentação. Durante as filmagens devemos deixar sempre uma porta aberta para o caos. Porque são essas situações, que fogem ao nosso controle, que trazem vida a um filme. Em “Saudade” existem inúmeras cenas que foram improvisadas.

A cena das cabras é um bom exemplo. Estávamos filmando e do nada um bando de cabras invadiram nosso set. Poderíamos ter cortado naquele momento, porque um bando de cabras berrando com seus sininhos estridentes pode ser algo realmente desastroso. Mas seguimos improvisando junto com Bruno. Abraçamos juntos o que a realidade nos dava naquele momento. Ao final chegamos numa cena emocionante.

Por fim, quanto do jovem Haroldo desejando fazer cinema no interior da Bahia reside nessa personagem de Bruno (que também deseja ser artista)? E como você enxerga o cenário atual para os jovens artistas do interior da Bahia que desejam enveredar pelo mundo das artes em comparação com o seu próprio começo?

Naquela época querer ser cineasta é o mesmo que hoje querer ser astronauta. Era a época das latas de negativo, onde pouquíssimos podiam filmar. Não existiam escolas de cinema ou qualquer coisa parecida. Dentro dessa perspectiva, tudo o que aconteceu nos últimos 20 anos no cinema brasileiro, foi realmente um milagre.

Meu melhor conselho para quem deseja ser um cineasta seria: vá procurar sua turma. A Plano 3 filmes, esse coletivo do qual faço parte, com meus amigos Paula Gomes, Marcos Bautista e Ernesto Molinero, foi o que realmente permitiu que as coisas acontecessem.

Eu, Paula e Marcos fomos colegas de turma na faculdade de Comunicação em Salvador, Ernesto chegou um pouquinho depois. Além de serem meus amigos da vida, a trupe representa também um gesto político. Um lugar seguro para a experimentação. Aqui podemos desafiar as formas como o cinema atual comercial ou industrial é feito. E assim poder desenvolver um cinema próprio, um cinema possível, que nasce do afeto e da vida cotidiana.

NOTA: Saudade Fez Morada Aqui Dentro já está disponível no catálogo da Netflix

Yves São Paulo é pós-doutorando pela UEFS. Doutor em Filosofia pela UFBA, é autor de A metafísica da cinefilia (editora fi, 2020), tradutor de Fotodrama, um estudo psicológico, de Hugo Munsterberg (Paco editorial, 2024), e organizador da coletânea Olney São Paulo por ele mesmo (editora fi, 2024).

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