cinema sob uma perspectiva contra-hegemônica

Festival do Rio | CinEntrevista: Giovani Barros

“O carnaval como tema funciona também como uma moldura criativa que nos permite tudo”, revela o diretor de Carne Fresca, curta-metragem exibido no Festival do Rio que tem como protagonista um lobisomem na folia carioca.

Giovani, antes de mais nada, obrigado por topar o nosso convite para essa entrevista e parabéns pelo seu trabalho. Eu fiquei muito curioso para saber como surgiu a ideia de criar um filme LGBTQIA+ que tem como protagonista um lobisomem e é ambientado no carnaval carioca. Como foi a experiência de filmar na rua em pleno carnaval? Algum tipo de cuidado extra teve de ser tomado?  

O “Carne Fresca” sempre foi pensado a partir da premissa que as cenas do encontro dos dois personagens principais durante o Carnaval deveriam ser filmadas no pleno acontecimento da festa. O filme tem a intenção de revelar tudo que acontece em volta ao Sambódromo, uma vivência do Carnaval que não é percebida por aqueles que estão acompanhando a festa de dentro das arquibancadas e mesmo pela televisão. A multidão que acompanha o carnaval nas frestas, o alívio e êxtase dos integrantes após dispersão, as pessoas nos bares e pensões nas casas adjacentes ali no Catumbi, todas em estado de suspensão nos quatro dias de festividades, são coisas que só existem também porque os Desfiles são realizados naquele espaço, naquele contexto específico.

Era importante para o filme que a gente pudesse capturar a vibração autêntica nas ruas para que a diegese proposta trouxesse uma espontaneidade que era exatamente o que queríamos transmitir.

O filme acompanha a jornada de um lobisomem que gosta de se perder do meio daquela gente toda, e inserir essa fabulação dentro de um registro documental nos permitiu inclusive reforçar que ele era apenas mais um corpo escondido no meio daquela confusão toda.

Essa vontade nos exigiu um certo planejamento de produção. Ganhamos um edital que nos permitiria fazer o filme, mas aí veio a pandemia e tivemos que esperar o mundo voltar ao pós-normal. Tentamos gravar no carnaval de 2022, mas o Carnaval foi adiado para abril e perdemos nosso planejamento. Só no Carnaval de 2023 que conseguimos as condições necessárias para conseguir filmar da forma que queríamos. O clima de festa nos deixava tranquilos e seguros para filmar, mas tivemos que lidar com o grande número de pessoas circulando, o que certamente impacta tanto a logística da equipe quanto a segurança do elenco e dos equipamentos.

Houve um cuidado extra com a movimentação, porque o carnaval é imprevisível e dinâmico (e porque tínhamos apenas uma noite para fazer todas as cenas do roteiro que se passavam naquela situação). Outro aspecto importante foi trabalhar com uma equipe enxuta e ágil para mantermos a mobilidade e adaptarmos rapidamente às situações que surgiam no ambiente real de uma festa de rua tão icônica, que nos garantiram conseguir capturar a autenticidade do carnaval.

Apesar de haver uma trama bem definida, sinto que no seu filme você trabalha no sentido de engendrar uma atmosfera onírica em conjunto com cenas que se passam em locações mais realistas. Essa mescla já existia desde a escrita do roteiro ou tomou corpo posteriormente?

Essa ideia já existia desde a primeira versão do roteiro.

O carnaval como tema funciona também como uma moldura criativa que nos permite tudo, né? Afinal de contas, tudo é permitido durante esses quatro dias no ano. Era importante que essa liberdade também fosse traduzida formal e estilisticamente, seja através dos figurinos deliberadamente construídos como fantasias, seja através da mistura de registros de atuação que variavam entre o performático e o naturalista.

Inserir elementos fantásticos num contexto realista por conseguinte nos permitiu acentuar um contraste entre o mundo real e o onírico que capturasse também as sensações que os personagens vivessem durante o carnaval, e também misturando offs e diálogos para que esse estado de suspensão ficasse mais evidente na condução da história.

Gostaria que você falasse sobre suas influências estéticas (cineastas/filmes) e se de alguma forma elas se manifestaram em Carne Fresca. 

As principais influências estéticas para o Carne Fresca são os filmes “Lira do Delírio” (Walter Lima Jr., 1978) e “Parceiros da Noite” (William Friedkin, 1981).

Em relação ao primeiro filme, “Lira do Delírio” é um dos filmes brasileiros que se preocuparam em retratar o carnaval de forma livre, conseguindo capturar a essência anárquica da festa e incorporando isso na estrutura do próprio filme. Também é um filme que brinca com as lógicas do cinema de gênero, jogando uma trama de gangster em pleno carnaval carioca.

Sobre o segundo filme citado, o que me impressiona nele é a forma como “Parceiros da Noite” aborda as lógicas do desejo interligada à transgressão e à violação das normas sociais, discutindo os limites do prazer entre o fascínio e o medo. O prazer é uma ferramenta poderosa de discussão sobre nossas próprias identidades e também como se configuram as relações de poder, o que adiciona uma complexidade à noção de desejo, além do filme não fazer nenhum julgamento sobre a validade ou moralidade dos atos dos personagens.

O que interessa ali é mostrar como o prazer pode ser sedutor e destrutivo, emancipador e glorioso, tudo ao mesmo tempo. A figura do lobisomem no curta “Carne Fresca” aparece então como uma progressão natural a essa ideia.

Para encerrar: quais foram os últimos filmes que você assistiu e mais te impactaram?

Sobre a última pergunta, o filme que assisti que mais me impactou nos últimos tempos foi “All Of Us Strangers”, dirigido pelo Andrew Haigh. É um filme que aborda a solidão gay dos homens millenials de uma forma que eu nunca tinha realizado antes. Foi através desse filme que finalmente entendi porque muitos homens gays que nasceram nos anos 80-90 não conseguem estabelecer vínculos com as pessoas que eles amam. São homens que foram obrigados a viver em um estado de negação emocional em suas infâncias e adolescências, num gap emocional que se revela na vida adulta (especialmente aqueles pós-40 anos) como uma angústia meio indizível que eu sempre senti e que só consegui realizar em algo mais palpável depois que vi esse filme. E esse sentimento que é a base do que me fez querer fazer o “Carne Fresca’ também.

SINOPSE de Carne Fresca

É carnaval no Rio de Janeiro. Saulo, um caçador solitário, percorre os becos escuros do centro da cidade em busca de uma nova presa. Entre farras e deboches carnavalescos, ele se depara com Gustavo, um jovem bailarino cuja beleza desperta nele uma paixão perigosa. Em meio à atmosfera efervescente do carnaval carioca, Saulo enfrenta os dilemas de sua condição de lobisomem e a irresistível atração por Gustavo. “Carne Fresca” é uma fábula carnavalesca que explora os temas de desejo, identidade e transgressão, situada na cidade maravilhosa.

SOBRE GIOVANI BARROS

Giovani Barros é roteirista e diretor. Como diretor, dirigiu os curtas “Uma Canção de Dois Humanos”, “As Heranças” e “A Hora Azul”, que tiveram passagem por vários festivais nacionais e internacionais. Seu último curta-metragem, “A Vez de Matar, A Vez de Morrer” foi selecionado em mais de 20 festivais mundo afora. Foi diretor assistente do curta “O Clube” (2014), de Allan Ribeiro. Atua como assistente de direção em longas-metragens, trabalhando em filmes como “Corpo Elétrico” de Marcelo Caetano, “Medusa” de Anita Rocha da Silveira, “Não Devore Meu Coração” e “Um Animal Amarelo” de Felipe Bragança e “Sem Seu Sangue”, de Alice Furtado. Também atua como produtor de elenco de filmes, séries e novelas.

Filmografia

2016 – “A Vez de Matar, A Vez de Morrer” (A Time to Kill, a Time to Die), 25min, HD

2014 – “A Hora Azul” (The Blue Hour), 18 min, HD

2011 – “As Heranças” (The Inheritances), 18 min, HD 2009 – “Uma Canção de Dois Humanos” (A Song of Two Humans), 9min, MiniDV