“O cinema é o meu alimento”, revela o cineasta, oriundo da comunidade que traz no sobrenome, ao lançar Kasa Branca, seu primeiro longa-metragem, no Festival do Rio.
Luciano, antes de mais nada, obrigado por topar conversar com a gente e parabéns pelo seu filme. Queria que você falasse um pouco sobre a sua trajetória no cinema, como e onde começou e em que momento você decidiu ou percebeu que gostaria de trabalhar com o audiovisual.
Obrigado, fico feliz com esse retorno tão positivo que o filme vem alcançando.
Na verdade, eu sou do Nós do Morro, né? Comecei ainda criança, com dez anos e aí uma semana depois eu fiz um curta-metragem da Katya Adler, como ator. E eu tinha dez, onze anos e aquilo já me encantou, sabe? Todo aquele circo que o cinema arma num set de filmagem, aquele circo tecnológico me encantou bastante.
E aí depois de muito tempo eu comecei a estudar cinema no Nós do Morro, o Vinícius Reis e a Rosane Svartman fundaram o Núcleo de Cinema. Depois eu comecei a estudar roteiro, história do cinema e escrevi um curta, Neguinho e Kika, e aquilo ali já foi um start meu para querer realizar e levar isso para a prática. Enfim, o curta ficou pronto, a repercussão foi boa e aí não teve mais volta.
Hoje eu vivo o cinema, não tem mais jeito. O cinema é o meu alimento.
Kasa Branca se passa majoritariamente em Chatuba, Mesquita (município da Baixada Fluminense). Houve algum motivo em especial para a escolha dessa localidade?
Sim, o primeiro motivo especial é porque eu queria realmente sair da minha zona de conforto. Eu moro na favela do Vidigal, seria fácil eu filmar ali porque eu estou na minha área, né? Só que eu comecei a frequentar muito a Baixada, a dar aula em Nova Iguaçu e aquele universo foi me encantando.
A própria relação do trem ali, eu o acho extremamente cinematográfico.
Quando eu escrevi o Kasa Branca, já estava querendo filmar num lugar plano, uma favela plana, e eu comecei a perceber que a Baixada Fluminense é muito rica, muito potente em poesia e que o cinema brasileiro poucas vezes mostrou a Baixada de uma forma digna, respeitosa.
E eu sinto falta desses lugares, né? O Rio de Janeiro é esse lugar também. Então eu sei que cinema é geografia, cinema é território. Eu adorei ter filmado lá, então o motivo especial é esse, de saber do poder que o cinema tem em relação a um espelho e a vontade de querer mostrar poesia.
Apesar de o poder público não ser tão presente, existe uma resistência e uma poesia nesse lugar que o mundo precisa ver: Chatuba de Mesquita.
Acredito que a escalação do Big Jaum, que ganhou notoriedade como humorista, tenha pegado muita gente de surpresa. Como se deu a entrada dele no projeto?
Eu fui dar uma oficina no Ponto Cine em Guadalupe e o Big participou dessa oficina, era uma oficina de roteiro e direção para cinema.
E eu já colei nele, porque eu estava escrevendo o roteiro do Kasa Branca e esse personagem dele é real: um menino adolescente, gordo e preto, eu já estava em busca desse ator e vi que o Big tinha o perfil que eu procurava, um menino muito inteligente, e antenado; então comecei a pesquisar sobre ele, vi que realmente ele faz muito stand up, é humorista e tal.
E aí eu conversei com o Yuri Marçal (humorista) sobre o filme, falando do meu interesse no Big. E ele falou: “cara, o Jim Carrey fez drama muitas vezes e muito bem, a gente que faz humor tem um lugar ali no drama interessante também para revelar”.
Essa dica me ajudou, o Big fez o teste de elenco e arrasou. E não é um perfil fácil de achar, né, adolescente gordo e negro, sabe?
Eu procurei muito em grupos de teatros até encontrar o Big. Eesse corpo é um corpo tão potente, tão bonito, sabe? O corpo preto, gordo, jovem, favelado…
Eu fico muito feliz de poder trazer esse lugar como protagonismo no meu filme, e esse corpo ser o herói do meu filme, o Big deu muita verdade para o filme.
Em minha crítica eu escrevi que Kasa Branca é um filme que transborda afeto, mesmo sem abrir mão de retratar os percalços que infelizmente são típicos do cotidiano de um morador preto e pobre de uma comunidade periférica.
E a julgar pelo que eu te vi falar no debate após a sessão no Odeon, me parece que você realmente teve essa preocupação de construir uma obra que fugisse dessa constante espetacularização da pobreza tão incansavelmente explorada no cinema brasileiro. Gostaria que você falasse sobre isso.
É, a gente que é oriundo de favela, a gente que é preto, enfim, vem fazendo esse cinema negro ali desde os anos 2000, né, que foi quando a tecnologia digital chegou na audiovisual com força, com Gilberto Gil, então ministro da cultura, subindo a favela, sabe?
Então nós tivemos políticas públicas que favoreceram a minha geração no sentido de poder fazer cinema e contar nossa própria história. A favela não é um retrato de violência, a favela não é só tiro porrada e bomba, na verdade, isso é o que a mídia vem mostrando durante muito tempo e a gente sempre foi muito incisivo em dizer: não, a gente não é isso.
Então a minha responsabilidade como cineasta é mostrar a verdade: a favela é poesia, a favela é afeto, a favela tem graça, a favela tem resistência, sabe? E isso falta na cinematografia brasileira, né? Eu acho que existe uma escassez nesse lugar.
A minha história percorre esse lugar da narrativa com afeto, porque eu senti um grupo de adolescentes que eram muito afetosos entre eles, isso é uma história real, né?
Não é uma mentira, é uma verossimilhança que está ali, latente. E eu acho que cada vez mais o povo brasileiro e a favela precisam desse respeito na nossa dramaturgia, e acredito muito que, nós que vivemos esse lugar, conseguimos fazer com que essa visibilidade obtenha avanços.
Para encerrar: quais filmes e cineastas você citaria como grandes influências em seu trabalho como diretor de cinema?
Olha, tem muitos filmes, né? Vou tentar sintetizar, porque gosto muito de misturar filmes e músicas como referências.
Acho que o pioneiro é Faça a Coisa Certa, do Spike Lee. Há séries também, como Atlanta, Euphoria, que possui uma linguagem pop, jovem e preta, e eu bebi muito dessa fonte para o Kasa Branca.
Há a presença feminina também, como Cafarnaum, da Nadine Labaki. São muitos os filmes que serviram como referência, eu consigo te falar alguns deles.
Mas falando em ancestralidade, eu vou te dizer que Kasa Branca é irmão do Marte Um, do Gabriel Martins, e assistindo ao filme dele, eu senti que a gente se conectou dentro de uma ancestralidade, nesse lugar da família preta, do sonho. Então, o Kasa Branca é da família do Marte Um também (risos).
Cria da favela do Vidigal, Luciano Vidigal é ator, roteirista, diretor de teatro e cinema. Estrelou 42 filmes e dirigiu um dos episódios do longa 5X Favela, exibido em Cannes. Kasa Branca é seu primeiro longa-metragem.