cinema sob uma perspectiva contra-hegemônica

Festival do Rio | Janis – Amores de Carnaval

A memória é uma ilha de edição.

Em fevereiro de 1970, uma das cantoras mais celebradas do mundo aportou em terras cariocas, onde viveu experiências intensas, para o bem e para o mal: foi expulsa do Copacabana Palace, hotel em que estava hospedada, por – segundo reza a lenda – desfilar com os seios à mostra na piscina do suntuoso estabelecimento, assistiu in loco, e trajando uma peruca que ninguém sabe de onde surgiu, ao desfile das escolas de samba, com direito a tentativa de entrar na pista; foi barrada – para sua imensa decepção – no Theatro Municipal, caminhou pela orla na presença dos então desconhecidos Serguei e Alcione, criou bolhas na pele sob o escaldante sol dos trópicos, apaixonou-se por um conterrâneo que estava de passagem pelo Brasil e depois se mandou com ele para a Bahia.

Ou seja, uma passagem breve, porém apoteótica, condizente com a trajetória efêmera de Janis Joplin, uma artista que, mesmo tendo precocemente morrido aos 27 anos, permanece até hoje como um dos grandes nomes da música pop do século XX.

Diante de tais fatos, chega a ser surpreendente que só cinco décadas após o ocorrido, a estada da cantora no Brasil tenha originado um filme: Janis – Amores de Carnaval, dirigido por Ana Isabel Cunha, que fez sua estreia no último dia 4 de outubro no Festival do Rio.

O fio-condutor do documentário é Ricky Ferreira, até então um jovem fotógrafo de 23 anos que convidou Janis para hospedar-se em seu apartamento no Leblon após a famigerada saída da cantora do Copacabana Palace. São as memórias de Ricky, agora com mais de 70 anos, que preencherão a narrativa com as pitorescas desventuras vividas pela rockstar.

E preencherão mesmo, literalmente. Ainda que, para a sorte da posteridade, quisesse o acaso que o cicerone de Janis tenha sido um fotógrafo, possibilitando a realização de alguns registros de sua passagem pelo Rio, o trunfo do filme reside no que não é visto, deixando a cargo da imaginação do espectador a projeção das folclóricas histórias que serão compartilhadas não só por Ricky, mas pelas demais pessoas que estiveram na companhia da artista.

De forma que tais relatos já seriam ricos o suficiente para preencher a lacuna deixada pelas imagens não registradas, o que faz com que alguns depoimentos, em especial o de Casagrande e Baby do Brasil, passem a impressão de que só estão ali para tapar buraco, ainda que não comprometam o resultado.

De volta a Ricky, o fotógrafo transborda autêntica emoção ao narrar suas memórias, como se mesmo após mais de cinquenta anos daquele encontro, seus olhos ainda brilhassem ao se recordar dos dias em que esteve ao lado de Janis Joplin.

Num momento em que vivemos a era da superexposição das imagens, seja de celebridades, sub celebridades ou pessoas anônimas, muitas vezes chegando a níveis alarmantes de suas respectivas intimidades, Janis – Amores de Carnaval surge para nos recordar que, até não muito tempo, existiu um mundo onde alguém mundialmente conhecido poderia vagar anonimamente por uma grande cidade.

Janis cantou em inferninhos da zona sul carioca rodeada de prostitutas e marinheiros que não faziam a mais remota ideia de quem ali estava, fartou-se de biscoito Maria com marmelada, bebeu licor de ovo (!) em botequins pé-sujo de Copacabana ao lado de bebuns anônimos, tudo isso com a liberdade de quem parecia apenas mais uma gringa na multidão, algo completamente impensável nos dias de hoje.