Em célebre entrevista concedida a François Truffaut, o mestre do suspense revela lembranças da juventude, o despertar da paixão pelos filmes e os infortúnios vivenciados durante as filmagens em sua estreia como diretor de cinema.
Alfred Hitchcock, você nasceu em Londres no dia 13 de agosto de 1899. De sua infância, só conheço uma história, a da delegacia. É uma história verdadeira?
É. Eu devia ter quatro ou cinco anos… Meu pai me mandou à delegacia de polícia com uma carta. O delegado leu e me trancou numa cela por cinco ou dez minutos, me dizendo: “É isso que se faz com os garotinhos levados”.
E o que você fez para merecer isso?
Não consigo imaginar – meu pai sempre me chamava de “minha ovelhinha imaculada”. Realmente não consigo imaginar o que pude ter feito.
Parece que seu pai era muito severo.
Era um grande ansioso; minha família adorava teatro; formávamos um grupinho bastante excêntrico, mas eu era o que se chama de criança bem-comportada. Nas reuniões familiares, ficava sentado no meu canto sem dizer nada, olhava, observava muito. Sempre fui assim, e continuo igual. Era o oposto do expansivo. Muito solitário também. Não me lembro de ter tido nenhum companheiro de brincadeiras. Divertia-me sozinho e inventava minhas brincadeiras.
Fui interno desde muito moço, em Londres, numa escola jesuíta, o Saint Ignatius College. Minha família era católica, o que na Inglaterra é quase uma excentricidade. Foi provavelmente durante minha temporada com os jesuítas que o medo se fortaleceu dentro de mim. Medo moral, de ser associado a tudo que é mau. Sempre me mantive afastado do que era mau. Por quê? Por medo físico, talvez. Tinha horror aos castigos corporais. Naquela época havia a palmatória. Acho que os jesuítas ainda a empregam. Era de borracha muito dura. Não batiam de qualquer jeito, não, era como a execução de um sentença. Mandavam você ir ver um padre no final do dia. Esse padre escrevia solenemente o seu nome num registro com a menção do castigo a ser infligido, e você passava o dia inteiro nessa expectativa.
Li que você era um aluno bastante mediano, bom só em geografia.
Geralmente ficava entre os 4 ou 5 primeiros da turma. Nunca fui o primeiro e só fui o segundo uma ou duas vezes, mais frequentemente era o quarto ou quinto. Criticavam-me por ser um aluno muito distraído.
E sua ambição, neste momento, era se tornar engenheiro, não?
Pergunta-se a todos os garotinhos o que querem ser quando crescer, mas devo dizer, em meu favor, que nunca respondi: “policial”. Disse: “engenheiro”. Então meus pais levaram isso a sério e me mandaram para uma escola especializada, a School of Engineering and Navigation, onde estudei mecânica, eletricidade, acústica, navegação.
A partir de tudo isso pode-se supor que sua curiosidade era essencialmente científica?
Sem dúvida. Dessa forma adquiri certos conhecimentos práticos da profissão de engenheiro: a teoria das leis da força e do movimento, a teoria e prática da eletricidade. Em seguida, tive que ganhar a vida e entrei para a Companhia Telegráfica Henley. Ao mesmo tempo, fazia cursos na Universidade de Londres, no departamento de Belas Artes, para aprender desenho.
Na Henley me especializei em cabos elétricos submarinos. Era encarregado de fazer as avaliações técnicas. Eu tinha uns dezenove anos.
E já se interessava por cinema?
Já, fazia muitos anos. Eu era empolgadíssimo com os filmes, o teatro, e volta e meia saía sozinho da noite para assistir às pré-estreias. Desde os dezesseis anos lia publicações sobre cinema; não as fan magazines nem as fun magazines, mas só publicações profissionais, sindicais, corporativas. Ainda trabalhando na Henley, estudei arte na Universidade de Londres: graças a isso fui transferido para o departamento de publicidade, na Henley, o que me permitiu começar a desenhar.
Que tipo de desenhos?
Desenhos para ilustrar anúncios publicitários, sempre para os cabos elétricos. Esse trabalho me aproximava do cinema, ou, mais exatamente, do que logo eu iria fazer no cinema.
Lembra-se do que, nessa época, mais o interessava em matéria de cinema?
Eu ia muito ao teatro, mas o cinema me atraía mais e eu tinha mais interesse pelos filmes americanos do que pelos filmes ingleses. Assistia aos filmes de Chaplin, Griffith, todos os filmes Famous Players da Paramount, Buster Keaton, Douglas Fairbanks, Mary Pickford, e também a produção alemã da Companhia Decla-Biocosp. É uma empresa que precedeu a UFA e onde trabalhou Murnau.
Lembra-se de um filme que o tenha impressionado especialmente?
Um dos filmes mais conhecidos da Decla-Bioscop era A Morte Cansada.
Era um filme de Fritz Lang, que na França se chamou Les Trois Lumiéres.
Deve ser esse, o ator principal era Bernard Goetzke.
E tinha interesse pelos filmes de Murnau?
Tinha, mas eles chegaram mais tarde. Em 23 ou 24.
O que podia ver em 1920?
Lembro-me de uma comédia que vinha da França: Monsieur Prince. O personagem, se chamava, em inglês, Whiffles.
É muito citada uma de suas declarações: “Como todos os diretores de cinema, fui influenciado por Griffith”.
Lembro-me sobretudo de Intolerância e O Nascimento De Uma Nação.
Como trocou a Henley por uma empresa de filmes?
Lendo uma revista corporativa, fiquei sabendo que a firma americana Famous Player-Lasky, da Paramount, estava abrindo uma filial em Londres. Iniciava a construção de estúdios em Islington e anunciava um programa de produções. Entre outros projetos, um filme adaptado de um romance cujo título esqueci. Sem largar meu trabalho na Henley, li atentamente esse romance e fiz vários desenhos que eventualmente pudessem ilustrar os letreiros.
Você se refere às legendas que constituíam os diálogos dos filmes mudos?
É isso. Nessa época todos os letreiros eram ilustrados. Você tinha em cada cartão a própria legenda, o diálogo e um pequeno desenho. O mais conhecido desses letreiros narrativos era “Chegou o dia…”, também tinha “Na manhã seguinte…”.
Para lhe dar um exemplo, se o letreiro dizia: “Nessa época Georges levava uma vida devassa”, embaixo dessa legenda eu desenhava uma vela com uma chama em cada ponta. Era muito ingênuo.
Então foi esse trabalho que você resolveu fazer e apresentar à Famous Players?
Fui mostrar meus desenhos e eles me contrataram na hora; depois virei chefe na seção de letreiros. Fui trabalhar no estúdio, no serviço de montagem. O chefe desse serviço tinha dois escritores americanos sob seu comando, e quando se terminava um filme o chefe montador escrevia as legendas ou reescrevia as do roteiro original: porque nessa época, graças à utilização de legendas narrativas, podia-se desfigurar totalmente a concepção de roteiro.
Ah, é?
Exatamente, pois o ator fazia de conta que falava e o diálogo vinha em seguida, num letreiro. Podia-se fazer o personagem dizer qualquer coisa, e graças a esse processo muitas vezes se salvaram filmes ruins.
Se um drama tinha sido mal filmado, mal interpretado e estava ridículo, então se escrevia um diálogo de comédia e o filme virava um grande sucesso porque era considerado uma sátira. Podia-se realmente fazer qualquer coisa… Pegar o fim de um filme e colocá-lo no início… é, tudo era possível.
Foi assim, provavelmente, que você começou a observar os filmes bem de perto?
Foi nessa época que conheci escritores americanos e aprendi a escrever roteiros. Além disso, às vezes me mandavam filmar cenas “extras” nas quais os atores não figuravam… Mais tarde, quando percebeu que os filmes feitos na Inglaterra não faziam sucesso nos EUA, a Famous Players parou sua produção e alugou seus estúdios aos produtores britânicos.
Foi então que li uma novela numa revista e, para treinar, fiz uma adaptação. Sabia que os direitos eram propriedade exclusiva e universal de uma companhia americana, mas para mim tanto fazia, pois só se tratava de um exercício.
Quando as companhias inglesas foram ocupar os estúdios de Islington, nos dirigimos a eles para continuarmos a trabalhar, e consegui um posto de assistente de direção.
Para o produtor Michael Balcon?
Primeiro trabalhei num filme, Always Tell Your Wife, interpretado por um ator londrino muito conhecido, Seymour Hicks. Um dia, Michael brigou com o diretor e me disse: “Por que você e eu não acabamos o filme sozinhos?”. Ajudei-o a finalizar o filme. Nessas alturas, a companhia formada por Michael Balcon alugou os estúdios e virei assistente de direção. Era a companhia que Balcon tinha fundado com Victor Saville e John Freedam. Eles andavam à procura de uma história, um argumento. Indiquei-lhes uma peça que se chamava Woman to Woman, cujos direitos eles compraram. Em seguida, quando disseram: “Agora precisamos de um script”, eu me ofereci: “Gostaria muito de fazer o script”. “Você? O que você já fez?” “Vou lhes mostrar uma coisa…”
E mostrei a adaptação daquela história que havia escrito como exercício. Ficaram impressionados e consegui o emprego. Foi em 1922.
Você tinha, portanto, 23 anos. Mas antes houve esse pequeno filme, o primeiro que dirigiu e do qual não falamos: Number Thirteen.
Ah, isso nunca foi terminado! Eram dois rolos.
Um documentário?
Não. Uma mulher que trabalhava no estúdio tinha sido colaboradora de Charles Chaplin, e, naquele tempo, considerava-se genial qualquer um que tivesse trabalhado com Chaplin. Ela havia escrito uma história e conseguimos um pouco de dinheiro… realmente, não era bom. E coincidiu com o momento em que os americanos estavam fechando o estúdio…
Nunca vi Woman to Woman e nem conheço o roteiro…
Como estava lhe dizendo, eu tinha vinte e três anos e nunca havia saído com uma moça. Nunca havia tomado um copo de bebida. A história era tirada de uma peça que fizera sucesso em Londres. Era sobre um oficial do exército inglês durante a Primeira Guerra Mundial. Tendo obtido uma permissão, ele vai para Paris, tem uma aventura com uma bailarina, depois volta para a frente de batalha. Lá, é vítima de um choque e perde a memória. Retorna à Inglaterra e se casa com uma mulher da alta sociedade. Depois reaparece a bailarina, com um filho; a história termina com a morte da bailarina.
Então, nesse filme dirigido por Graham Cutts, você era o adaptador, o autor dos diálogos e o assistente de direção?
Ainda mais que isso. Como um amigo meu, cenógrafo, não pôde trabalhar no filme, eu disse: “Serei também o cenógrafo”. Então fiz tudo isso e participei da produção. Minha futura mulher, Alma Reville, era ao mesmo tempo a montadora e a continuísta do filme. Na época, continuísta e montador eram a mesma pessoa. Hoje, a continuísta cuida de tantos livros, como você sabe, que é uma autêntica perita-contadora. Portanto, foi fazendo esse filme que conheci minha mulher.
Em seguida, exerci minhas diferentes funções em diversos filmes. O segundo foi The White Shadow. O terceiro, The Passionate Adventure. O quarto, The Blackguard, e em seguida The Prude’s Fall.
E todos esses filmes, quando os revê em sua memória, considera-os em pé de igualdade ou prefere alguns deles?
Woman to Woman foi o melhor e o que fez mais sucesso. Quando filmamos o último, The Prude’s Fall, o diretor tinha uma namorada e partimos para filmar as externas em Veneza. Era tudo caríssimo, de verdade. A namorada do diretor parecia não gostar de nenhuma das locações, e voltamos para o estúdio sem ter filmado nada. Quando o filme ficou pronto, o diretor disse ao produtor que não queria mais saber de mim. Aí fui despedido. No fundo, sempre desconfiei de que uma pessoa da equipe – o diretor de fotografia, um recém chegado, fazia intrigas.
Em quanto tempo se rodava um filme desses?
Seis semanas.
Imagino que o critério para medir o talento era filmar com o mínimo possível de letreiros?
Exatamente.
E no entanto frequentemente eram roteiros tirados de peça de teatro.
Fiz um filme mudo, A Mulher do Fazendeiro, que era todo com diálogos, mas tentei utilizar o mínimo de letreiros e me servir dos recursos da “produção de imagens”. Acho que o único filme que não tinha nenhum letreiro foi A Última Gargalhada, com Jannings.
Um dos melhores filmes de Murnau…
Foi filmado quando trabalhava na UFA. Em A Última Gargalhada, Murnau tentou inclusive estabelecer uma linguagem universal, servindo-se de uma espécie de esperanto. Todas as indicações de rua, por exemplo, as placas, os letreiros das lojas, eram escritas nessa linguagem sintética.
Na verdade, há certas indicações em alemão no prédio onde mora Emil Jannings, é no grande hotel em que elas estão em esperanto. Imagino que você devia se interessar cada vez mais pela técnica do cinema, e que era muito atento…
Eu era muito consciente da superioridade da fotografia dos filmes americanos em relação à dos filmes ingleses. Aos dezoito anos já havia estudado isso, por puro prazer. Tinha observado, por exemplo, que os americanos sempre se esforçavam em isolar a imagem do segundo plano, colocando luzes atrás dos primeiros planos, ao passo que nos filmes ingleses os personagens se fundiam no segundo plano, não havia separação, não havia relevo.
Estamos em 1925. Depois da filmagem de The Prude’s Fall, o diretor resolve dispensá-lo como assistente. Michael Balcon lhe oferece o posto de diretor?
Ele me perguntou: “Você gostaria de dirigir um filme?”.
Respondi: “Nunca tinha pensado nisso”.
E era verdade, estava muito contente em escrever roteiros e fazer o trabalho do diretor de arte, não me imaginava de jeito nenhum como diretor.
Então Balcon me disse: “Temos uma proposta para um filme anglo-alemão”. Deram-me um segundo escritor para fazer o roteiro e parti para Munique. Minha futura mulher, Alma, devia ser minha assistente. Ainda não estávamos casados mas não vivíamos em pecado, éramos muito puros.
Tratava-se de O Jardim dos Prazeres, tirado de um romance de Sandys. Só o vi uma vez e guardo a lembrança de uma história muito movimentada.
Melodramática, mas com certas cenas interessantes. Vou lhe contar os primeiros dias de filmagens, pois se trata de meu primeiro filme como diretor. E, naturalmente, eu tinha o sentido do drama.
Pois então, no sábado à noite, às vinte para as oito, estou na estação de Munique, prestes a viajar para a Itália, onde devemos filmar as externas. Na estação, esperando a partida do trem, penso: “É meu primeiro filme como diretor”. Quando vou hoje para as locações, estou acompanhado de uma equipe de 140 pessoas! Mas ali, naquela plataforma da estação da estação, só tinha comigo o ator principal do filme, Miles Mander, o câmera Baron Ventimiglia e a moça que devia fazer a nativa cair na água. E, por último, um cinegrafista de atualidades, já que no porto de Gênova teríamos de filmar a partida de um navio. Essa partida seria filmada com uma câmera no cais e uma no convés. Depois o barco pararia, os atores desceriam e o cinegrafista se encarregaria então de filmar os passageiros fazendo suas despedidas.
A segunda cena que tenho de filmar é em San Remo. É com a moça nativa que vai se su1c1d4r, e Levett, o vilão da história, precisa entrar no mar, manter a cabeça da moça embaixo d’água, ter certeza de que ela morreu, trazer seu corpo para a praia e dizer: “Fiz o possível para salvá-la”. As cenas seguintes se passarão no lago de Como, no hotel da Villa d’Este (lua de mel, cenas de amor na beira do lago). Minha mulher está comigo na plataforma da estação e conversamos; ela não pode ir conosco. Sua função era ir a Cherbourg receber a estrela do filme, que chegava de Hollywood.
Tratava-se de Virginia Valli, a maior estrela da Universal, que fazia o papel de Patsy. Portanto, minha noiva precisa ir recebê-la em Cherbourg, na chegada do navio L’Aquitaine, levá-la para Paris, comprar seu guarda-roupa e ir com ela ao nosso encontro na Villa d’Este.
O trem vai partir às 8 horas. Faltam 2 minutos para as 8. O ator Miles Mander me diz: “Meu Deus, esqueci minha maleta de maquiagem no táxi”, e sai correndo. Grito para ele: “Estaremos no hotel Bristol, em Gênova. Pegue o trem amanhã à noite, já que só filmaremos na terça-feira”.
Repito que estamos no sábado à noite e devemos chegar a Gênova no domingo de manhã para preparar a filmagem.
São 8 horas, o trem não sai. Passam-se alguns minutos…
São 8:10. Há uma grande altercação na barreira de controle e vejo Miles pulando por cima da barreira, perseguido por três empregados da estação. Encontrou sua maquiagem e consegue, por um triz, pular no último vagão.
Foi esse meu primeiríssimo drama no cinema, mas isso é só o começo!
O trem vai andando. Devo cuidar eu mesmo da contabilidade, pois não tenho ninguém para fazê-la. É quase mais importante do que dirigir o filme, o dinheiro me preocupa imensamente. Temos leitos reservados. Chegamos à fronteira austro-italiana. Então Ventimiglia me diz: “Tome muito cuidado porque temos a câmera mas não devemos declará-la de jeito nenhum, do contrário vão nos taxar todas as objetivas”.
“Mas como, por quê?”
“A companhia alemã nos recomendou que passássemos a câmera de contrabando”.
Então pergunto: “Onde está a câmera?”
Ele me responde: “Debaixo do meu leito”.
Como você sabe, sempre tive medo dos policiais; então começo a suar, e sou informado, naquele momento, que há três mil metros de filme virgem nas nossas bagagens e que também não devemos declará-los; aparecem os guardas alfandegários, e para mim é um grande suspense. Não descobrem a câmera, mas acham a película que, como não foi declarada, é confiscada.
Chegamos a Gênova no domingo de manhã e, claro, sem filme virgem. Durante o dia inteiro tomamos providências para tentar encontrar película cinematográfica. Na segunda de manhã, digo: “Temos de mandar o cinegrafista de atualidades a Milão para comprar filme na Kodak”. Eu me atrapalho na contabilidade, é uma confusão terrível entre liras, marcos e libras. O cinegrafista volta ao meio-dia e traz o equivalente a 20 libras esterlinas de filme. Agora, os três mil metros de filme virgem que foram confiscados na fronteira chegaram, e nos esperam na alfândega, onde tenho que pagar o imposto. Portanto, gastei 20 libras à toa, o que no nosso orçamento representa muito, pois temos o dinheiro contado para a filmagem das externas.
Na terça-feira, o navio levanta âncora ao meio-dia. É o Lloyd Prestino, um navio grande, que vai para a América do Sul. É preciso alugar um bateau-mouche para irmos do cais ao navio, e isso representa mais 10 libras. Finalmente, está tudo certo. São 10:30 e pego minha carteira para dar uma gorjeta ao sujeito do bateau-mouche. Minha carteira está vazia, não tenho mais um tostão.
Desapareceram dez mil liras. Volto ao hotel e procuro por todo lado, até debaixo da cama, e não encontro o dinheiro. Vou à polícia e digo: “Alguém deve ter entrado no meu quarto, de noite, enquanto eu dormia”, e, sobretudo digo a mim mesmo: “Ainda bem que você não acordou, porque com certeza o ladrão o teria apunhalado”. Estou muito triste, mas me lembro de que temos de filmar e, emocionado pela ideia de dirigir minha primeira sequência, esqueço o dinheiro.
Quando acabo de filmar, sinto-me novamente arrasado e peço dez libras emprestadas ao câmera e quinze ao ator. Sei que não será suficiente. Então escrevo a Londres, pedindo um adiantamento do meu salário, e escrevo também à empresa alemã, em Munique: “Talvez eu vá precisar de um dinheiro extra”. Mas não me atrevo a pôr no correio essa segunda carta, pois poderiam me responder: “Como já pode saber que precisará de dinheiro extra?”
Assim, só mando a carta para Londres. Em seguida voltamos ao hotel Bristol, almoçamos e saímos a caminho de San Remo. Depois do almoço vou até a calçada e lá estão meu câmera Ventimiglia, a moça alemã que deve fazer a nativa e o cinegrafista das atualidades, que acabou seu trabalho e deve voltar para Munique. Ali estão os três, numa conversa muito solene!
Então me aproximo e pergunto: “Tem algo errado?”
“Tem, a moça, ela não pode entrar na água”.
“O que você quer dizer com ‘ela não pode entrar na água’?”
“Ela não pode entrar na água, não está entendendo?”
“Não, não entendo, o que quer dizer?”
E ali na calçada, os dois câmeras são obrigados a me dizer que é o período de menstruação, etc. Nunca em minha vida tinha ouvido falar nisso.
Então, com as pessoas passando na nossa frente, dão-me todos os detalhes, ouço atentamente e, quando me contam tudo, continuo aborrecido, furioso ao pensar em todo o dinheiro que desperdicei, as liras, os marcos, para trazer essa moça conosco. Muito zangado, pergunto: “Por que ela não disse isso em Munique, há três dias?”
A mandamos de volta junto com o cinegrafista e partimos para Alassio. Encontramos outra moça mas, como é um pouco mais pesada do que a nossa alemã “incomodada”, meu ator não consegue carregá-la no colo; sempre a deixa cair no chão. Há uns cem curiosos que rolam de rir.
Quando finalmente consegue trazê-la, eis que uma velhinha que catava conchas atravessa o campo olhando para a câmera bem de frente!
Agora estamos no trem que nos leva à Villa d’Este. Estou muito nervoso porque a estrela de Hollywood, Virginia Valli, acaba de chegar. Não quero que saiba que é meu primeiro filme, e a primeira coisa que digo à minha noiva é: “Você tem dinheiro?”
“Não.”
“Mas tinha?”
“Pois é, mas ela chegou com outra moça, uma atriz chamada Carmelita Geraghty; eu queria levá-las para o hotel Wesminster, na rua de la Paix. Elas insistiram em ficar no Claridge.”
Então conto à minha noiva minhas próprias agruras. Finalmente, começamos a filmar e tudo funciona sem maiores problemas. As cenas correm bem. Nessa época, filmávamos cenas de luar em pleno sol, e mandávamos tingir de azul o filme. Depois de cada tomada, eu olhava para minha noiva e perguntava: “Ficou bom, deu certo?”
Agora tenho coragem de mandar um telegrama a Munique dizendo: “Acho que precisarei de dinheiro extra”. Nesse meio tempo, recebo uma ordem de pagamento de Londres, o famoso adiantamento de meu salário. E o ator, muito pão-duro, exige o dinheiro que me emprestou.
Pergunto: “Por quê?”
E ele responde: “Porque meu alfaiate está pedindo um sinal para o meu terno”.
Não era verdade.
O suspense continua. Recebo bastante dinheiro de Munique, mas a conta do hotel, os alugueis dos barcos a vapor no lago, e todo tipo de coisas me preocupam o tempo inteiro. Estou nervosíssimo. Estamos na véspera de nossa partida. Não só não quero que a estrela saiba que é meu primeiro filme, mas não quero que ela saiba que não temos dinheiro e que somos uma equipe miserável. É aí que faço uma coisa realmente feia, com óbvia má-fé: deformo os fatos, repreendo minha noiva por ter trazido a jovem amiga de Virginia.
“Por conseguinte”, digo-lhe, “você vai encontrar com a estrela e lhe pedir duzentos dólares emprestados”. E ela vai e me traz.
Foi assim que consegui pagar a conta do hotel e as passagens para o vagão-leito. Vamos pegar o trem, teremos de baldear em Zurique para estar em Munique no dia seguinte. Chegamos à estação e me cobram o excesso de bagagem, pois as duas americanas tinham malas enormes, e agora praticamente não tenho mais dinheiro; recomeço minhas contas e como você já sabe, peço para a minha noiva fazer todo o serviço sujo.
Digo-lhe: “Você poderia ir perguntar às americanas se querem jantar”.
Elas respondem: “Não, trouxemos sanduíches do hotel porque desconfiamos da comida nesses trens estrangeiros”.
Então, graças a isso, pudemos jantar. Novamente recomeço minhas contas minuciosamente e percebo que, no câmbio das liras para francos suíços, vamos perder uns tostões. E também estou preocupado com o atraso do trem. Temos uma baldeação em Zurique; são 9 horas da noite e vemos um trem saindo da estação, é o nosso. Seremos obrigados a passar uma noite em Zurique com tão pouco dinheiro?
Então o trem para e agora o suspense vai além de tudo o que consigo aguentar. Os carregadores se oferecem mas os afasto – muito caro – e levanto eu mesmo as malas.
Você sabe que nos trens suíços as janelas não têm caixilhos, e daí o fundo da mala esbarra com força numa janela e ‘plaft’!
Foi o maior barulho de vidro quebrado que já ouvi na vida.
Os empregados chegam correndo: “Por aqui, cavalheiro, acompanhe-nos”.
Levam-me à sala do chefe da estação e tenho de pagar a vidraça quebrada: trinta e cinco francos suíços.
No final das contas, consegui pagar o vidro e cheguei a Munique com um só pfenning1 no bolso. Foi assim minha primeira filmagem de externas!
- Moeda alemã produzida na Idade Média e utilizada de 1924 a 1948, quando foi substituída pelo marco. ↩︎
Trecho de Hitchcock/Truffaut: Entrevistas (Companhia das Letras, p.33 – 45)