Num momento em que o famigerado pós-horror¹ parece ter virado sinônimo de filmes de terror hipoteticamente profundos, dotados de forte carga dramática, dilemas psicológicos penosos e coisas afins, ou seja, terror para adultos, é reconfortante assistir a uma obra e constatar que há ali um filme que se entrega inteiramente a diversas convenções do gênero, escancara suas referências e em momento algum ensaia renunciar à sua identidade.
Estamos diante de A Substância (The Substance), novo longa dirigido pela francesa Coralie Fargeat, protagonizado pela estadunidense Demi Moore, em uma performance radicalmente distinta daquelas que pautaram a sua carreira em Hollywood, interpretando a estrela decadente Elisabeth Sparkle.
A premissa é aparentemente banal: após saber que seria demitida do programa do qual era apresentadora e sofrer um forte acidente automobilístico onde por, muita sorte, saiu praticamente ilesa, Elisabeth é convidada a experimentar uma misteriosa droga chamada de Substância, que lhe permitiria renascer mais jovem a cada sete dias, fazendo brotar de dentro de seu corpo um ser que funcionaria como uma espécie de versão melhorada de si mesma: mais jovem, esbelta, sem rugas ou demais marcas que denunciam a passagem do tempo na pele de qualquer indivíduo, mas que certamente exercem um peso maior sobre os ombros de quem, como Sparkle, é obrigada a lidar com os perversos preceitos da ditadura da beleza.
Ao topar a empreitada, Elisabeth é avisada de que precisa seguir com afinco uma única regra: revezar as semanas com o seu outro eu. Enquanto uma está em torpor se alimentando por meio de sonda, a outra está vivendo em sociedade e vice-versa, mas em um prazo que não pode exceder sete dias.
E é assim que do corpo de Elisabeth brota Sue (Margaret Qualley), que logo a sucederá como apresentadora no programa que comandou por anos, convertendo-se rapidamente em um fenômeno de audiência, sendo alçada ao posto de mais nova queridinha da América.
É evidente que a fama possui um delicioso sabor para a jovem Sue, que cada vez mais buscará mecanismos para se manter por mais tempo em convívio social e desfrutar dos prazeres mundanos que o universo das celebridades tem o poder de proporcionar.
Ao quebrar a regra obrigatória, Elisabeth/Sue deverão arcar com as repugnantes consequências de sua(s) escolha(s).
E não é exagero ou excesso de sensibilidade falar em repugnância.
Porque cabe destacar que a direção do filme não está nada interessada em poupar seu espectador do que é asqueroso ou hediondo, muito pelo contrário, o uso contínuo de closes e planos-detalhe atua como mola propulsora das bizarrices que se acentuam à medida que a situação começa a escapar do controle dos personagens envolvidos.
Convém ressaltar o excelente manejo que Coralie faz valer de diversas referências que parece ter absorvido para conceber este filme: há ecos de O Homem Elefante, Alien, O Oitavo Passageiro, Hellraiser, Carrie – A Estranha, além dos filmes de body horror de David Cronenberg, como Videodrome, Scanners e Gêmeos – Mórbida Semelhança.
Mas o que ocorre aqui passa longe de ser cópia barata, em verdade são referências trabalhadas com a personalidade autoral de quem definitivamente exerce controle artístico sobre a sua obra.
A cineasta exibe maestria e segurança ao caminhar ilesa pelo movediço terreno da homenagem, terreno este no qual um ordinário deslize é capaz de ocasionar uma mise-en-scène facilmente genérica.
Ainda que certamente seja possível extrair uma leitura crítica do filme, em especial no que tange à busca obsessiva por se encaixar numa hipotética beleza ideal à qual diversas figuras do show business — em especial as mulheres — são obrigadas a sucumbir, A Substância não possui nenhum pudor em se portar como um autêntico filme de terror frontal, sem grandes pretensões de destilar lição de moral.
A partir de dado momento, o que se vê em tela é uma verdadeira escalada caótica do horror, mesclando o que há de melhor na tradição trash e gore, com direito a sangue em excesso, tripas e vísceras para todos os lados, closes em corpos deformados, momentos de humor onde a risada nasce de algo que visivelmente está ali para ser engraçado e outros onde o absurdo torna-se grotesco a tal ponto que só nos resta a risada incrédula como válvula de escape para tamanha bizarrice.
Ao fim de tudo, fica a sensação de que, ao contrário do que apregoam os profetas do apocalipse cinematográfico, é possível realizar um filme de gênero que abraça com vigor os elementos visuais e atmosféricos a ele inerentes sem que para isso seja necessário subestimar a inteligência do espectador ou negar a si.
Sendo assim, a audiência agradece.
¹Só para deixar claro que discordar com veemência do uso de tal nomenclatura não me impede de apreciar produções que parcela da crítica encaixa neste pseudo subgênero, tais como A Bruxa, Hereditário e O Farol.