Em entrevista realizada a Aída Marques, o pai do cinema moderno brasileiro conta como surgiu a ideia para o filme que mudaria para sempre os caminhos cinematográficos deste país.
Nelson, como surgiu a ideia de filmar Rio, 40 graus?
Eu trabalhava no Rio como assistente de direção, já fazendo uma chanchada chamada Balança mas Não Cai, que era um programa de rádio muito famoso. Não era televisão ainda, era rádio. Mas esse filme parou no meio, acabou o dinheiro da produção, ficamos esperando para arranjar dinheiro. E o estúdio ficava no Jacarezinho. Ao lado da favela do Jacarezinho, uma favela fantástica, a maior daquele tempo. E eu… e alguns outros da equipe, o eletricista, o maquinista, morávamos lá na favela. E, no primeiro domingo de folga… Eu fui almoçar uma feijoada carioca daquelas na favela e conheci a favela por dentro, com outro olhar. De fora, tinha o olhar da classe média: “A favela é um perigo”.
“Onde tem pobre, tem malfeitor, tem batedor de carteira, tem ladrão”. Era assim. Ainda é um pouco assim. A população da favela hoje está em 2 milhões, 3 milhões. Naquele tempo eram 200 mil favelados. Mas, de qualquer forma, a favela é igual a qualquer bairro popular, só que mais bonito ainda, porque tem a vista da cidade, coisa bonita. E fiz vários amigos, conhecidos. E me deu a ideia de fazer o filme, de ser ambientado na favela. Foi daí que nasceu a história.
Agora, para fazer a produção demorou, porque eu ofereci o roteiro para os produtores, mas eles rejeitavam totalmente a ideia de fazer um filme na favela. Aquela coisa: “Não, não, não”. Eles tinham apoiado o filme do Humberto Mauro Favela dos meus amores, que foi um fracasso de bilheteria, então não estavam interessados no tema. Mas isso tinha acontecido muito tempo antes. De qualquer forma, não consegui produção, mas consegui fazer o roteiro e encontrei por acaso um velho amigo, companheiro do colégio do estado de São Paulo, que era funcionário do Banco do Brasil. Encontrei com ele e contei as histórias da favela, e ele disse: “Vamos fazer o filme. Vamos fazer o filme, sim”. Ele fazia teatro e fazia parte de uma cooperativa. Aquelas companhias de teatro amador, eles faziam essa cooperativa para conseguir dinheiro para a produção, vendendo cotas para os amigos ricos. E assim foi feito o filme, através de um sistema de cooperativa. A equipe toda morava em um lugar só e recebia o direito de ter tantas cotas do filme como salário. Não recebia salário, não, apenas casa e comida. Depois que o filme fosse vendido, ia ter a renda do filme. Um esquema financeiro, econômico, que meu amigo, bom economista, criou, imitando o teatro. No teatro havia muito disso, ainda existe isso. Depois de encontrarmos a forma de arranjar o dinheiro para produzir o filme, começamos a filmar.
A produção demorou um pouquinho, porque, de vez em quando, era preciso esperar mais um pouco de dinheiro para poder continuar. Mas, de qualquer forma, em seis ou sete meses o filme ficou pronto, filmado. Tivemos a edição do filme, e, quando estava fazendo a mixagem, o dono do laboratório, um francês famoso, Bonfanti, disse: “Você tem distribuidor?”. “Não, não temos distribuidor, não.” “Porque eu vou trazer o pessoal da Columbia” – a empresa americana. E os americanos foram ver o filme e disseram: “Vamos distribuir”. Deram um adiantamento, que serviu para pagar a dívida que a gente tinha com o laboratório, e mais algum, que nós festejamos. Estávamos todos felizes. Mas então, de repente, surge a notícia: o filme havia sido proibido. Alguém disse que o filme era comunista, só tinha miséria, favela, essas coisas todas. O chefe de polícia proibiu. Tudo bem, foi proibido. Miséria, aquela coisa toda, mas vamos brigar, vamos brigar. Fui aos jornais para reclamar: “Meu filme foi proibido”.
A primeira redação que visitamos foi a do Diário Carioca, cujo redator-chefe, um jornalista fantástico, Pompeu de Souza, pela história dele anterior… Ele defendeu o Nelson Rodrigues. O Nelson Rodrigues era proibidíssimo, e ele defendeu o Vestido de noiva, conseguindo a liberação. Então era um especialista em defender causas contra a censura. E aí o Pompeu disse: “Eu quero ver o filme!”. Ele viu o filme. E, ao mesmo tempo, o chefe de polícia, que proibiu o filme, não conhecia o filme. E alguém da imprensa come- çou a dar o título: “Não viu e não gostou”. Então, o chefe de polícia pediu para ver o filme. Assistiu e, quando acabou a projeção, disse: “É pior do que eu pensava! Essa coisa é propaganda comunista. Apreendemos mais dois filmes iguais a esse, que vieram da China”. Cara maluco, inventava histórias. Mas aí começou essa história da proibição. O Pompeu organizava sessões, chamava jornalistas e também artistas, intelectuais, escritores, políticos. Sei que foi uma onda de sessões e mais sessões. E o Pompeu enfrentou o chefe de polícia, quando ele convocava uma entrevista coletiva para explicar por que tinha proibido o filme. Nesse momento, o Pompeu disse: “Eu também vi”. E discutiu. E quando saiu a entrevista, que devia ser exclusiva, só o chefe de polícia falando, saiu também o debate entre o chefe de polícia e o jornalista Pompeu de Souza. Daí foi uma defesa. Aí começou, realmente, a chance. Agora, sabe que ano era? Cinquenta e cinco, o ano da eleição. Quem estava no poder era a UDN, que tinha derrubado Getúlio. Ele morreu, suicidou-se. Mas quem tomou conta foi o Café Filho, que era do lado oposto do Juscelino, e o Diário Carioca apoiava o Juscelino. Então, o Diário Carioca fez a campanha do Rio, 40 graus combinando também com a campanha política.
O filme foi bastante divulgado. Ninguém sabia que existia esse filme. Quando isso aconteceu, a sorte foi ter sido proibido. O PSD, o partido do Juscelino, tinha governadores, por exemplo, em Minas Gerais, no estado do Rio, que era independente. Minas Gerais, claro, PSD. Pernambuco, PSD. Rio Grande do Sul, PSD. O filme havia sido proibido pela censura em todo o território brasileiro, mas foi exibido nesses estados, nas capitais desses estados, onde o poder era outro, diferente da UDN. E com grande festa. Fazia-se uma festa enorme. Não só o governador assistia, como toda a Assembleia Legislativa. Era muita onda, realmente. E o filme, durante algum tempo, ficou ligado à questão política do momento, que era a sucessão presidencial. Houve a tentativa de golpe. O presidente pediu licença e entrou outro, que era favorável a um golpe, mas o general Lott se opôs ao golpe. Então continuou a situação democrática legal, garantindo-se a posse do Juscelino. O que eles queriam era evitar a posse do Juscelino. E toda essa história… Nós fomos para a justiça, primeira instância, o juiz achou que não era competente, então foi para a segunda instância, o Tribunal de Justiça. E no Tribunal de Justiça nós ganhamos de sete a zero, porque aí já tinha acontecido tudo na política. O Carlos Lacerda já tinha ido embora com o Carlos Luz, que era o presidente deles. Então o filme foi liberado, pronto. Essa foi a história de como o filme aconteceu.
Trecho de Rio, 40 Graus – O Moderno Cinema Brasileiro (UFRJ, p.33-37)