cinema sob uma perspectiva contra-hegemônica

Rogério Sganzerla: As promessas do tédio e da coragem

Por Miriam Alencar (publicada originalmente no Jornal do Brasil em 1966)

Rogério Sganzerla tem apenas vinte anos, é o mais novo do grupo de jovens promessas do cinema paulista, mas possui alto grau de potencialidade que o transforma num dos mais promissores reformadores do nosso cinema. Nunca fez curso de cinema e continua estudando na Faculdade de Direito Mackenzie. É catarinense e começou a se interessar por cinema em 1959, quando estudava em Florianópolis. Aos treze anos gostava muito do cinema americano e se intelectualizava, a ponto de assistir cinco vezes a Um Condenado à Morte Escapou, de Bresson. Gostava de Orson Welles sem conhecê-lo. Também em 1959 escreveu seu primeiro roteiro. Naquela época, o cinema moderno não existia, os roteiros seguiam os ditames de manuais, a Nouvelle Vague aparecia no Brasil e ninguém sonhava com o cinema de autor.

Aos 17 anos começou a fazer crítica no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo. Depois esteve na Visão e agora está no Jornal da Tarde. Está terminando um livro sobre cinema moderno.

“Nunca pensei em ser crítico. Sempre quis mesmo foi dirigir. Mas gosto do que faço porque enquanto pude, fiz cinema com a máquina de escrever. Não diferencio o escrever sobre cinema do escrever cinema. No ano passado, Maurice Legeard veio de Santos e me deu algum dinheiro pra eu filmar o que quisesse. Resolvi fazer uns 16 mm. Os atores foram dois amigos meus a quem recorri na última hora. Dei a câmera a Andrea Tonacci, que é apaixonado por fotografia. Ele nunca tinha feito nada em 16 mm e realizou um trabalho excepcional, como eu queria: tons claros, contrastados, simples e requintados. A fotografia é a melhor coisa do filminho que ainda não está sonorizado – não tenho produção nem muito dinheiro, por isso, tudo vai devagar. Foi totalmente rodado nas ruas de São Paulo com paupérrimos recursos. Gosto entretanto do que fiz porque seus 14 minutos estão narrados com mise-en-scène. Já estou tratando do episódio paulista de O Doce Esporte do Sexo, que a Mapa Filmes vai produzir, e nele tentarei desenvolver os temas do meu curta, ainda que em outros rumos. Pretendo fazer também um curta sobre Mário de Andrade.”

“Todos pretendem fazer denúncias através do cinema. Eu também. Mas não me interessa constatar o desespero das almas sem Deus, a psicologia feminina e a incomunicabilidade. Não gosto de Bolognini, Zurlini, Malle, Visconti e a maioria das fitas de Bergman, salvo Mônica E o Desejo e Noites de Circo. Opto pela denúncia global da alma e do corpo subdesenvolvido, isto é, do homem brasileiro. No Brasil tudo está contra o cineasta – falta de capitais, inexperiência, sabotagens de interesses externos. Neste clima de subdesenvolvimento e miséria só há uma condição positiva para o cineasta: liberdade. Sem ela não há nada. O cinema novo começa a partir da liberdade do autor. Depois vêm os filmes.”

Rogério Sganzerla é um dos que mais combatem o velho cinema paulista:

“São Paulo sempre foi o centro de um dos cinemas mais velhos do mundo. Nunca houve um filme paulista que convencesse ninguém, e as exceções foram sufocadas pela mediocridade dominante – O Grande Momento e Bahia de Todos os Santos (que não foi rodado aqui). O cinema de estúdio subdesenvolvido, o cinema arrumadinho, o cinema sério, expressa perfeitamente a mentalidade gagá de técnicos e críticos. Ainda não acabou toda a lost generation do cinema paulista, os clássicos expressionistas caipiras. Alguns ainda estão aí fazendo suas fitas. Mas a geração já está condenada e pode viver no máximo mais uns dez anos. O novo cinema paulista é uma questão de moral, e principalmente uma questão de bom gosto. A nova geração muda as perspectivas políticas, econômicas etc, mas rompe principalmente com o mau gosto que se julga requintado. Ao contrário do que todos pensam, eu acho que D’Aversa, Khoury e outros retratam universos pessoais. O mau gosto de Noite Vazia não está somente na décor da Vera Cruz e é, aliás, a corrente fundamental do cinema paulista.”

“O cinema moderno vai se identificar mais e mais com o cinema americano. Até o próprio Cinema Novo, que no início insurgiu-se violentamente contra tudo o que viesse dos EUA. Menino de Engenho, de Walter Lima Jr, é, como o cinema do velho Humberto Mauro, bem americano. É dessa troca entre um cinema superdesenvolvido e um cinema subdesenvolvido que nasce um conflito, uma dialética, uma energia. Os filmes que pretendo fazer terão apxoimações com King Vidor e Howard Hawks. Não digo influências. Antes poderia ser uma revisão e uma crítica do cinema americano.”

“O cinema é uma arte que nasce da identificação nos pólos contrários, e por isso é que todo cinema forte é ambíguo. O cinema paulista nunca prestou talvez porque tenah faltado coragem aos diretores. Coragem de conceber filmes. Aqui, um filme ou é um drama sério ou uma comédia despretensiosa. O único que conseguiu fundir pólos extremos foi o isolado José Mojica Marins, que filmou uma exigente história de terror, com as piores condições de produção. Há em À Meia-Noite Levarei Sua Alma toda a eficiência de um sistema de mise-en-scène.”

“Penso que o cinema moderno está entrando numa nova fase. Chega ao fim a moda da câmera na mão, dos longos travellings, do acúmulo de diálogos, de um cinema redundante. O cinema japonês esgotou-se. Anda mais decadente que o americano. Na Inglaterra nunca houve nada mesmo de especial. Na França há somente Godard e Michel Deville. Dos italianos há Rosi, Marco Belocchio e outros. Não me interesso pelas apelações do cinema tcheco e polonês, que não se libertaram ainda do intelectualismo e composições expressionistas. Nestes últimos dois anos ou três, o cinema não viveu de autores, mas de filmes: O Homem dos Olhos de Raio-X, Hatari, Desafio, etc. Não penso, como Glauber Rocha, que dentro de alguns anos o cinema brasileiro vai ser o melhor do mundo. Penso que alguns diretores vão dar o que falar: Saraceni, Walter Lima Jr, Glauber (naturalmente), Gustavo Dahl, e os novos Eduardo Escorel e Geraldo Veloso – esses três ligados à problemática mineira, quer dizer, barroca, do nosso cinema.”

“O cinema contemporâneo vive do cinema mudo. Lá é que Godard vai buscar suas formas. Agora surge uma nova fase, caracterizada talvez por uma maior eficacidade. Um cinema mais sintético, mais rápido, mais conciso. Em meus filmes, procurarei levantar as possibilidades de fundir estilos opostos e tratar dos problemas reais.”

Trecho de Encontros: Rogério Sganzerla (Azougue Editorial, p.14-17)