Transgressor, polemista, provocador, vanguardista, contraditório, caótico, encrenqueiro, genial: não são poucos os vocábulos existentes na língua portuguesa que podem servir ao ingrato propósito de adjetivar o cineasta baiano Glauber de Andrade Rocha, ou simplesmente Glauber Rocha, falecido prematuramente num dia como o de hoje há exatos 43 anos.
Por ocasião da data, reproduzimos abaixo um artigo escrito pelo então jovem de 23 anos sobre o movimento cinematográfico do qual ele seria – e ainda é, ousamos dizer – a expressão máxima, mesmo que acompanhado de grandiosos colegas do porte de Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Leon Hirszman e outros mais.
Em 1957-58, eu, Miguel Borges, Carlos Diegues, David E. Neves, Mário Carneiro, Paulo Saraceni, Leon Hirszman, Marcos Farias e Joaquim Pedro de Andrade (todos mal saídos da casa dos vinte anos) nos reuníamos em bares de Copacabana e do Catete para discutir os problemas do cinema brasileiro. Havia uma revolução no teatro, o concretismo agitava a literatura e as artes plásticas, em arquitetura a cidade Brasília evidenciava que a inteligência do país não encalhara. E o cinema? Vínhamos do fracasso de Ravina, de uma súbita interrupção em Nelson Pereira dos Santos, de um polêmico Walter Hugo Khouri, do fracasso Vera Cruz & Cavalcanti e sofríamos na carne a tirania da chanchada.
Eu realizara Pátio e Luiz Paulino dos Santos Um Dia na Rampa. No Rio, Saraceni terminava Caminhos e Marcos Farias preparava as filmagens de O Maquinista. Joaquim Pedro estava com os planos de O Poeta do Castelo, Leon e Marcos faziam projetos e Miguel iniciara um filme sobre funcionários públicos, cujo título não me recordo. Sabíamos que na Paraíba havia um jovem chamado Linduarte Noronha e o nome de Roberto Pires ainda era dúvida inédita: Redenção.
Discutíamos muito: eu era eisensteisiano, como todos os outros, menos Saraceni e Joaquim Pedro, que defendiam Bergman, Fellini, Rossellini, e me lembro do ódio que o resto da turma devotava a estes cineastas. Detestávamos Rubem Biáfora, achávamos Alex Viany sectário e Paulo Emílio Sales Gomes alienado. Xingávamos Jean-Claude Bernardet e a crítica mineira era colocada na categoria dos reacionários e traidores do cinema brasileiro. Maurício Gomes Leite assistiu uma destas reuniões e foi dos poucos que nos fez acreditar nas possibilidades da cultura cinematográfica em Minas Gerais vir a ser, algum dia, responsável pelo desenvolvimento objetivo do nosso cinema.
Mas o que queríamos? Tudo era confuso. Quando Miguel Borges fez um manifesto, disse que nós queríamos cinema-cinema. Paulo respondeu que aquilo era como a história do menino que pediu ao pai uma bola-bola e o pai ficou sem saber o que era. Deu em briga e o movimento do cinema-cinema entrou pelos canos, com muito romantismo.
Pátio e Caminhos foram experiências ousadas na época; eu voltei para a Bahia, Saraceni, Gustavo Dahl, Joaquim Pedro foram para a Europa, mas antes realizaram Arraial do Cabo e Couro de Gato.
Leon, Miguel, Marcos e outros ficaram no Rio, discutindo se um filme devia ser feito em close ou em plano geral. De toda aquela iconoclastia, somente Nelson Pereira dos Santos escapara das lanças.
O tempo passou. Quatro anos depois, Gustavo Dahl começava, da Itália, a descontrolar a burrice cinematográfica de São Paulo com artigos inéditos no Brasil, pela verdade e coragem. Jean-Claude, dando uma virada louca, mandou Bergman plantar batatas na Suécia e disse que Rossellini era o começo.
Congresso de críticos: Aruanda estoura, Paulo Emílio toma contato com a crítica nova. Da Bahia foram Orlando Senna e Plínio Aguiar (acompanhando Walter da Silveira e Hamilton Correia); do Rio seguiram David Neves, Paulo Perdigão, Carlos Diegues – gente aparecida nas páginas de O Metropolitano; na Europa, Arraial do Cabo tira um, dois, três prêmios; O Poeta do Castelo, de Joaquim Pedro, faz sucesso de crítica, Mandacaru Vermelho substituiu Vidas Secas e Nelson Pereira dos Santos vem para a Bahia, quando Trigueirinho Neto já saía com Bahia de Todos os Santos; começa na Bahia a produção de longa-metragem com Barravento e A Grande Feira. 1959-60-61 foram agitados e concretos após aquele 1958 morno, estéril nos conflitos da adolescência.
Surge Mulheres e Milhões. Ely Azeredo investe contra o filme de Jorge Ileli, e Saraceni, chegando da Europa, fala de Godard, Antonioni, John Cassavetes, Rossellini, Ray, Pasolini – ataca a indústria e no auge da discussão Ely Azeredo pronuncia uma palavra mágica no Brasil, embora velha em outros cantos do mundo: Cinema Novo. O nome pega e dá briga. Descobrimos na luta que Alex Viany era o pai do Rio e Paulo Emílio o pai de São Paulo. Jean-Claude e Gustavo Dahl sustentaram artigos n’O Estado de São Paulo, enquanto eu, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão e David Neves abríamos a polêmica em jornais importantes como Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Metropolitano.
Bienal: Couro de Gato, de Joaquim Pedro, faz sucesso. Polêmica, Paulo Emílio diz que o cinema brasileiro estava surgindo, A Grande Feira rompe bilheterias, Mandacaru Vermelho desperta entusiasmo da melhor crítica, Ruy Guerra parte para fazer Os Cafajestes, Miguel Torres para Três Cabras de Lampião, Carlos Diegues, Leon, Marcos, Miguel lançam mãos em Cinco Vezes Favela, Saraceni se lança em dois projetos, A Crônica da Casa Assassinada e Amor de Gente Moça. Na Bahia, Rex Schindler edita Festival de Arraias e da Paraíba nos chega a notícia de que Linduarte Noronha não está parado.
Mas não é só isto. O entusiasmo injustificável, porque hoje nós sabemos os caminhos. Gustavo Dahl gritou Em Santa Margherita Ligure (quando Arraial do Cabo tirou o grande prêmio) que nós não queremos saber de cinema: queremos ouvir a voz do homem.
Gustavo definiu nosso pensamento. Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, John Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. O nosso cinema é novo como pode ser o de Alex Viany e o de Humberto Mauro, que nos deu em Ganga Bruta nossa raiz mais forte.
Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa. Nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes anti-industriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista comprometido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio cultural.
Não existe na América Latina um movimento como o nosso. A técnica é haute coutore, é frescura para a burguesia se divertir. No Brasil o Cinema Novo é uma questão de verdade e não de fotografismo. Para nós a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil!
Isto é quase um manifesto.
Trecho de Cadernos de Cinema: Cinema Novo (Azougue Editorial/Cavideo, p.29-31)