Logo que as sequências de ação de “Fúria Primitiva” começam a se intensificar, fica clara a influência da franquia de John Wick. É só notar bem as coreografias de luta ou o uso de neon nas cenas para perceber essa inspiração nos filmes do personagem vivido por Keanu Reeves. E aí pode surgir uma dúvida, seria o filme de estreia de Dev Patel na direção um mero genérico de John Wick?
“Fúria Primitiva” traz a clássica história de vingança, seguindo a forma John Wick, com uma premissa bem simples. Kid (vivido por Dev Patel) presenciou o assassinato brutal de sua mãe por homens que queriam desocupar a terra onde viviam a mulher e o filho, o que o atormenta e que o leva a não pensar em outra coisa que não seja vingar-se dos assassinos. A trajetória de Kid pela sua almejada vingança também não traz grandes inovações, pelo contrário, bebe na fonte da já batida jornada do herói, onde vemos caminhada do protagonista até encontrar se reencontrar consigo mesmo, passando pelo início em que ele trabalhava como um lutador que tinha que apanhar em lutas arranjadas, passando pela sua queda e a orientação de um mentor, até alcançar seu objetivo final.
Como disse anteriormente, “Fúria Primitiva” marca a estreia do ator britânico Dev Patel, que também assina o roteiro ao lado de Paul Angunawela. Patel nasceu em Londres, mas seus pais são descendentes de indianos. E é essa herança indiana que traz um toque diferenciado ao filme. O filme no original se chama “Monkey Man” e o homem macaco do título (na tradução literal) faz referência tanto a uma máscara de macaco que Kid usava nas lutas em que tinha de apanhar quanto a um deus-macaco do hinduísmo chamado Hanuman, cuja história a mãe de Kid lhe contava quando criança. Todo o aspecto místico do hinduísmo presente no filme é muito bem inserido no longa. Desde os flashbacks com a mãe de Kid lhe contando as histórias até o tempo que ele passa num templo. Patel trabalha muito bem esse aspecto da cultura indiana e acaba sendo um diferencial que traz um encantamento ao filme.
Outro aspecto interessante a se destacar, e que também marca um diferencial em relação à franquia estrelada por Keanu Reeves, é a questão da luta de classes presente em “Fúria Primitiva”. Já mencionei antes que a mãe de Kid foi assassinada durante a remoção de famílias de uma área onde iriam construir uma grande fábrica. O responsável por essa fábrica é um líder fundamentalista religioso, Baba Shakti, com bastante influência política e que se alinha a um partido conservador – algo que lembra muitos líderes religiosos daqui do Brasil. Shakti é a representação de uma elite que busca ludibriar o povo, enquanto legisla, manobra e manipula apenas em causa própria e da sua própria classe. Já Kid se atormenta culpando a si mesmo por, quando criança, não ter conseguido ajudar a mãe. Essa autoculpabilização faz com que o protagonista se submeta a ser surrado em lutas clandestinas – inclusive toda a atmosfera do ambiente das lutas é muito bem criada por Patel. É somente quando Kid toma consciência de quem realmente é, das suas raízes, da sua classe, que ele encontra a força necessária para buscar sua vingança. Torna-se não somente uma vingança pessoal, mas também uma vingança de classe.
Temos, então, em “Fúria Primitiva”, mais do que um John Wick genérico, pois Patel busca inspiração na coreografia, no jogo de câmeras, na fotografia e até mesmo numa premissa simples para também mesclar com o encantamento proporcionado pelos elementos da cultura hinduísta e uma generosa pitada de luta de classes. Dev Patel não inventa a roda e nem traz grandes inovações, porém mostra que está longe de ser algo negativo buscar inspirações e entrega uma estreia forte, vibrante e animadora.
Nilvio Pessanha é professor da rede pública do Rio de Janeiro, membro do podcast Cine Trincheiras e pai do Francisco.