Por Iuri Freire
Retratos Fantasmas é o quarto longa-metragem dirigido pelo cineasta Kléber Mendonça Filho, sucedendo Crítico (2008), O Som ao Redor (2013), Aquarius (2016) e Bacurau (2019), este último realizado em parceria com o seu conterrâneo Juliano Dornelles.
Não é novidade ou exagero afirmar que Kléber é uma das mais proeminentes figuras surgidas no meio audiovisual brasileiro dos últimos 15 anos, tendo realizado filmes que certamente podem ser enquadrados na categoria de clássicos contemporâneos do cinema nacional, aclamados por crítica, público e laureados em alguns festivais pelo mundo afora, principalmente Cannes, que deu a Bacurau o prêmio da mostra Um Certo Olhar e onde o diretor fez parte do júri presidido pelo estadunidense Spike Lee em 2021; de forma que não cause espanto o fato da cidade francesa ter sido o local escolhido para sediar a premier mundial de sua mais recente película.
Tendo o centro da cidade de Recife como cenário e inspiração, o longa, por intermédio de relatos narrados em primeira pessoa pelo próprio diretor como que numa espécie de filme-diário, nos mostrará em forma de memorabilia visual a afetiva relação de Kléber com a sua cidade natal, mediante imagens de arquivo que irão percorrer salas de cinema, o apartamento da mãe falecida de de forma prematura e, claro, os filmes que fizeram e fazem parte de sua trajetória.
Primeiro como cinéfilo, posteriormente como cineasta em formação ao utilizar a moradia enquanto laboratório experimental para a realização de filmes caseiros, até finalmente a consolidação como diretor de cinema.
Em dado momento de Retratos Fantasmas a câmera de dentro de um automóvel retrata os letreiros de diversas drogarias existentes em Recife, feito uma espécie de metáfora imagética a evidenciar as cicatrizes urbanas de uma metrópole adoecida.
Com isso, o filme fortifica a sensação de que, no fundo, todo centro de cidade compartilha de diversas similaridades, o que confere um aspecto de natureza universal a uma história aparentemente regional, quando a verdade é que essa transmutação do micro em macro é uma constante na história da sétima arte, ou como escreveu Miguel Borges a respeito do Cinema Novo: “o cinema alcança mais plenamente o âmbito universal quando se empenha na revelação fílmica de uma realidade nacional”.
Seja em Recife, Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre, há uma certa atmosfera decadente reforçada pelo embate entre construções antigas versus a modernidade coagida de prédios construídos para soarem futuristas, mas que são apenas cafonas, a exemplo dos famigerados edifícios espelhados. Isso sem falar em pombos, mendigos, camelôs, pipoqueiros, artistas de rua, ambulantes, engravatados de toda espécie constantemente apressados e, claro, cinemas que morrem e dão lugar a igrejas.
Dezenas, provavelmente centenas deles. Onde hoje há um infame fariseu por detrás de seu púlpito, ontem desfilavam Sônia Braga, Marlon Brando, Paulo César Pereio, Zezé Motta, Antônio Pitanga, Claudia Cardinale, Hugo Carvana, Milton Gonçalves e outras milhares de icônicas figuras da sétima arte.
Parece que em dado momento da história o cinema não mais passou a ser encarado como um elemento alusivo à mise-en-scène citadina, de forma que acabou por ser ferozmente devorado quase que inteiramente por uma lógica mercantilista de integrá-lo a uma dinâmica focada essencialmente nas redes de consumo, tendo seu espaço na urbe cada vez mais ocultado.
É lógico que, por tratar-se de uma modalidade artística nascida na virada do século XIX para o XX, o cinema rapidamente acabou sendo cooptado pela indústria, não se trata de negar isso.
A questão é que essa shoppingcenterização das salas se deu de forma tão brusca que os cinemas de rua ainda existentes parecem totens anacrônicos de uma época que jamais voltará, como se fossem imagens em preto e branco inseridas de forma grosseira em uma foto colorida.
Como se fossem elementos estranhos àquele ecossistema.
Como se fossem recordações que se materializam à nossa frente.
Tal como fantasmas.
Em diversas capitais brasileiras existe uma igreja neopentecostal onde décadas antes reinou um suntuoso cinema.
Em Recife não é diferente. Espaços anteriormente ocupados por salas de exibição que moldaram o caráter cinéfilo de então jovens como Kléber Mendonça Filho foram extintos e metamorfosearam-se em arcabouços fantasmagóricos que servem de combustível nostálgico para a melancolia daqueles que lamentam a extinção quase completa das salas de rua que, se não dizimadas, migraram para os shoppings, ainda que haja aqueles que bravamente teimam em existir, a exemplo do Cinema São Luiz, na capital pernambucana, retratado nesta obra com assumido carinho pelo diretor.
No fim das contas, tudo é memória. O que resta é a memória. O problema é que ela por si só não é capaz de tornar visível para outrem tudo aquilo que encontra-se ilustrado na mente de quem consigo a traz. E é aí que entra o generoso poder da imagem e seu decorrente signo material: a fotografia.
24 fotografias contidas num átimo de segundo é tudo aquilo que necessitamos para que o estático torne-se movimento, ou melhor, finja ser movimento diante da limitação dos ordinários olhos humanos: é a espantosa ilusão do cinema, que mente na nossa cara o tempo todo (ainda bem).
E que sorte a nossa que existam figuras como Kléber Mendonça Filho, munidas da nobre capacidade de transmutar em arte visual as agridoces lembranças que habitam os grotões de sua memória.
Retratos Fantasmas é uma carta de amor travestida de acerto de contas de Kléber com o centro de Recife, o(s) cinema(s), e sua própria história.
É reminiscência banhada em graça, de quem possui a sapiência de compreender que não teria tornado quem se tornou não fosse seu constante contato com aqueles locais.
Sendo o filme mais pessoal do diretor, possui o mérito de não descambar para a egolatria, porque o realizador é tão íntimo da crônica por ele concebida, que consegue navegar em mares seguros justamente por conhecer os limites que não se furta de impor a si mesmo.
Retratos Fantasmas é uma denúncia contra aquilo que os donos do poder escolheram cinicamente apelidar de progresso. O esplendor sórdido da gentrificação sobre as memórias das cidades e seus habitantes; o triunfo do proselitismo neopentecostal sobre a arte.
Retratos Fantasmas é uma celebração da nostalgia. Um pequeno, porém contundente monumento à saudade erguido por um cineasta que prova ter a nobre perícia de transfigurar em arte visual as agridoces lembranças que habitam as veredas cravejadas em suas memórias.
É como se Kléber Mendonça se dirigisse a nós, espectadores, e sussurrasse em nossos ouvidos: toda cidade tem uma história para contar.